Valor econômico, v. 21, n. 5172, 21/01/2021. Política, p. A12

 

Aras se nega a agir contra Bolsonaro e menciona hipótese de estado de defesa

Luísa Martins

André Guilherme Vieira

Raphael Di Cunto

21/01/2021

 

 

Nota de Aras sugerindo a hipótese de Brasil adotar regime de exceção provoca indignação no Ministério Público e preocupação no Supremo
Pressionado por juristas, artistas, políticos e cidadãos a agir diante do desdém do governo federal em relação à pandemia, o procurador-geral da República, Augusto Aras, emitiu nota esquivando-se da atribuição de processar o presidente Jair Bolsonaro por crime contra a saúde pública - e sugerindo que a Constituição prevê hipóteses para a decretação de um “estado de defesa”.

As declarações repercutiram mal dentro do próprio Ministério Público Federal (MPF). Integrantes da cúpula da Procuradoria-Geral da República (PGR), além da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), manifestaram receio com o posicionamento de Aras e cobraram dele uma atuação mais firme sobre Bolsonaro. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) também criticaram o PGR.
No comunicado, o procurador-geral afirma: “o estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa. A Constituição Federal, para preservar o Estado Democrático de Direito e a ordem jurídica que o sustenta, obsta alterações em seu texto em momentos de grave instabilidade social. A considerar a expectativa de agravamento de crise sanitária nos próximos dias, mesmo com a contemporânea vacinação, é tempo de temperância e prudência, em prol da estabilidade institucional”.

Aras mencionou indiretamente as representações enviadas ao seu gabinete nos últimos dias, especialmente depois do colapso de abastecimento de oxigênio no Amazonas, para que ele investigue e denuncie Bolsonaro, o que poderia levar ao impeachment. Entretanto, segundo ele, essa imputação se insere no escopo dos crimes de responsabilidade, que devem ser processados não pela PGR, mas pelo Poder Legislativo.
Afirmou, ainda, que “as instituições estão funcionando regularmente” e que ele “vem adotando todas as providências cabíveis desde o início da pandemia” - um exemplo, diz, foi a recente requisição de um inquérito epidemiológico e sanitário ao Ministério da Saúde para apurar o caso de Manaus, o que também foi criticado pelos colegas de MPF.

A cúpula da PGR divulgou nota afirmando que o correto seria o próprio Aras instaurar uma investigação independente, e não terceirizá-la ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, cuja própria atuação no enfrentamento à covid-19 é questionada.

No texto, os subprocuradores destacam ter havido “debilidade da coordenação nacional” para o combate à pandemia, além de “comportamentos incomuns de autoridades”, como o fato de Bolsonaro ter defendido tratamentos sem comprovação científica e desestimulado a vacinação.

A recente declaração do presidente, que atribuiu às Forças Armadas “o incabível papel” de decidir sobre a prevalência ou não da democracia no país, também é um alerta para crime de responsabilidade, sugerem os subprocuradores, cobrando uma nova postura de Aras.

A nota diz que a defesa da democracia seria “mais apropriada e inadiável que a antevisão de um ‘estado de defesa’ e suas graves consequências para a sociedade brasileira, tão traumatizada com o quadro de pandemia vigente”.

A ANPR também pressionou Aras a “apurar a responsabilidade por ações e omissões que nos levaram a esse estado de coisas”, em uma referência à situação crítica da pandemia e do atraso do Brasil quanto à vacinação.

O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, disse temer pela democracia. “Onde há fumaça há fogo. Não vejo com bons olhos esse movimento, justamente por parte de quem precisa ser visto como fiscal maior da lei”.

Outros dois ministros ouvidos reservadamente pelo Valor afirmaram que o estado de defesa pode ser um caminho sem volta - a hipótese foi definida por esses magistrados como “preocupante” e “uma loucura”.
A decretação do estado de defesa, como sugerido por Aras, travaria parte da agenda de Bolsonaro no Congresso Nacional, por impedir a aprovação de propostas de emendas constitucionais (PECs) caras ao governo.

É o exemplo da PEC Emergencial - que acaba com fundos públicos setoriais e deve promover cortes no Orçamento para evitar o descumprimento de regras fiscais - e as reformas administrativa, que traz mudanças nas regras dos servidores públicos, e tributária, que prevê a reformulação do PIS/Cofins.

O estado de defesa poderia impedir até a votação de uma PEC a todo momento lembrada por Bolsonaro: a do voto impresso, defendida pelo governo como forma de evitar fraudes nas urnas eletrônicas - algo que jamais provou ter de fato acontecido.

Apesar da polêmica, uma fonte graduada ligada à ala militar do governo diz que a decretação de um estado de defesa não está sobre a mesa de Bolsonaro, nem sendo discutida no Palácio do Planalto.