Valor econômico, v. 21, n. 5169, 18/01/2021. Braail, p. A14

 

Vacina só terá efeito após três meses, afirma especialista

Luísa Martins

18/01/2021

 

 

Pedro Curi Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, diz que país terá que manter medidas de controle
Líder da maior pesquisa nacional sobre a propagação da covid-19 no Brasil, o epidemiologista Pedro Curi Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), afirma que os efeitos da vacinação no país não serão notáveis de imediato, começando a aparecer em pelo menos três meses a partir do início da campanha. Até lá, alerta, a população precisa cumprir as medidas já defendidas pelas autoridades sanitárias para evitar o contágio, como o distanciamento social e o uso de máscaras de proteção.

Recém-recuperado da doença, o pesquisador vem sendo alvo de ironias por parte do presidente Jair Bolsonaro, do qual é um crítico: para ele, a política do governo no combate à pandemia tem sido “errática”, induzindo a população a desacreditar a ciência.
Em entrevista ao Valor, Hallal falou sobre a segunda onda de casos em Manaus e analisou os dados de eficácia das vacinas disponíveis para uso no Brasil. Segundo ele, embora com eficácia menor do que a vacina de Oxford, a Coronavac funciona perfeitamente para a imunização individual. “O leitor do Valor que injetar a Coronavac no braço estará protegido”, disse.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O caso do Amazonas, em que pacientes de covid-19 têm morrido às dezenas por falta de oxigênio, tem chamado a atenção para uma segunda onda da pandemia. Já chegamos a este ponto?
Pedro Curi Hallal: O Brasil, em geral, está em uma primeira onda prolongada, mas Manaus vive um caso clássico de segunda onda, parecido com o que vemos na Itália e em Nova York. Já temos mais casos diários no Amazonas do que na primeira onda.

Valor: Por que isso ocorreu?

Hallal: Há uma série de motivos. A principal é o fato de pesquisadores terem identificado, a partir de amostras coletadas em dezembro, uma nova cepa do vírus em circulação. É uma cepa mais transmissível, o que aumenta o número de infectados e leva ao caos que vemos hoje, mas não é mais letal. Ou seja, a chance de morte é a mesma que se observa em quem contrai o vírus original.

Valor: Além da nova cepa, quais outros motivos geram preocupação aos cientistas no caso de Manaus?

Hallal: No início, Manaus foi um caso atípico, em razão de vários fatores, como o vínculo da Zona Franca com a China, os voos diretos para lugares onde os casos de covid-19 estavam em alta naquela época e a contínua pressão do setor produtivo, empresarial e político pela reabertura do comércio. Além disso, criou-se uma ideia de que Manaus tinha atingido a “imunidade de rebanho” com as infecções naturais, o que é uma falácia no que diz respeito ao coronavírus. Esse momento só chegará com a vacina.

Valor: Em quanto tempo, a partir do início da vacinação, vamos notar efeitos no número de infectados?

Hallal: Temos que ser realistas: em menos de três meses não veremos nada de muito maravilhoso ou positivo em termos de diminuição no número de casos. Para ter algum efeito coletivo, de 10% a 20% da população precisa estar vacinada, o que deve ocorrer em aproximadamente 90 dias, na melhor das hipóteses.

Valor: E como evitar que, na iminência da vacina, a população deixe de lado as medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias como prevenção à covid-19, como o distanciamento social?

Hallal: O Brasil deveria seguir o modelo adotado no Reino Unido para que a população, mesmo com a campanha de vacinação já iniciada, não deixe de ter cuidados. O governo britânico determinou, ao mesmo tempo, o início da imunização e o ‘lockdown’. A ideia é fazer o vírus circular muito pouco neste primeiro momento, para que, quando as pessoas voltarem a circular, muita gente já esteja protegida.

Valor: Em que momento a pandemia saiu de controle no país?

Hallal: A gente vinha em uma curva com valores relativamente baixos pelo menos até junho. Dali para frente, a coisa começou a se descontrolar quase que em progressão geométrica. E isso tem muito a ver com as eleições municipais. Não apenas porque houve mais circulação nas ruas devido à campanha eleitoral, mas porque os políticos que queriam se reeleger foram cedendo às pressões do setor econômico, flexibilizando as restrições. Havia uma tendência bem explícita de que os candidatos que defendiam medidas mais restritivas teriam mais dificuldades de se eleger, o que é natural diante da crise econômica. Em outubro, os efeitos disso apareceram e houve uma piora feia. Aí juntou novembro e dezembro, com o verão, festas de fim de ano... O que está acontecendo agora não é coincidência. O coronavírus funciona sempre do mesmo jeito - quando se cometem excessos e aglomerações, há uma escadinha de três semanas que não falha: na primeira, aumenta o número de casos; na segunda, o de internações; na terceira, o de mortes.

Valor: De que maneira as vacinas disponíveis hoje vão ajudar a amenizar esse cenário?

Hallal: Para proteção individual, qualquer uma delas funciona de forma perfeita. Agora, há um segundo objetivo: a imunidade coletiva - que é como se fosse um escudo que fica em cima da população, protegendo todo mundo ao mesmo tempo. Isso se atinge quando 70% das pessoas têm os anticorpos para combater o vírus. Nesse ponto é que a eficácia faz diferença: quanto menor a eficácia, mais gente tem que ser vacinada para se atingir esses 70%.
Valor: Os números da Coronavac, cuja eficácia foi primeiramente anunciada em 78% e depois em 50,4%, trazem algum tipo de receio à comunidade científica?

Hallal: A falha de comunicação foi ruim, mas o resultado é positivo. Com a Coronavac, a chance de você pegar covid-19 é de 1,8% - ou seja, 18 a cada mil pessoas - e a chance de desenvolver um quadro grave é praticamente nula. É muito melhor a vacina do Instituto Butantan do que não haver vacina alguma. O chato em relação à divulgação dos números é que gerou muita polêmica e inflamou discursos errôneos.

Valor: Por exemplo?

Hallal: Os negacionistas falaram que a eficácia de 50% significa que a cada duas pessoas que pegarem a covid-19, só uma vai estar protegida, o que não é verdade. O que significa é que, comparado com quem não toma a vacina, quem toma diminui pela metade o risco de contrair o vírus e reduz a quase zero o risco de ter um quadro grave. E isso é ótimo. Pode escrever que o leitor do Valor que injetar a Coronavac no braço estará protegido.

Valor: A vacina que será aplicada neste ano garante proteção contra eventuais novas cepas?

Hallal: Não é provável que a vacina contra o coronavírus seja uma dose única na vida. Será como a da gripe, que temos que renovar. Será uma vacina que terá de ser adaptada de tempos em tempos, atualizada às cepas que estão circulando mais no momento. Ainda não há evidências precisas sobre esse intervalo de tempo, mas essa não é a preocupação maior neste momento.

Valor: Nos últimos dias, surgiram preocupações sobre a eficácia da vacina em relação a essa nova cepa. O sr. concorda?

Hallal: Tem um fundo de verdade, mas não acho que seja motivo para desespero. Se a gente olhar vacinas parecidas - não parecidas na forma e na tecnologia, mas para doenças que também são virais e respiratórias -, isso é bastante comum. A vacina da gripe, por exemplo, é atualizada com bastante frequência para proteger contra cepas que estão circulando no momento. Não vejo isso como um fator desesperador. É algo para levar em consideração, mas a tecnologia necessária para criar uma vacina é muito mais complexa do que a tecnologia necessária para proteger contra uma nova cepa que está circulando. É bastante provável que, quando tivermos que fazer pela segunda vez a vacina, daqui a dois ou três anos, vão tranquilamente já estar incorporadas na nova versão as cepas que estiverem circulando. Não vejo como motivo de desespero. Vejo como uma preocupação com a qual a ciência vai saber lidar no seu devido tempo.
Valor: Que avaliação o sr. faz da atuação do Ministério da Saúde do início da pandemia até agora?

Hallal: O Ministério da Saúde acertou em algumas coisas logo no início, ainda na gestão do Luiz Henrique Mandetta, que recomendava o distanciamento social. Isso fez com que o vírus circulasse muito menos no Brasil do que em outros lugares, como na Itália e na Espanha, em que o vírus chegou bombando. Mas ainda na gestão Mandetta surgiu um problema que perdura até hoje: a falta de políticas de testagem em massa e de rastreamento de contágio. O único ministro que levou isso a sério, pelo menos no discurso, foi Nelson Teich, mas não houve concretização devido à interferência direta do presidente da República, que ainda discute cortinas de fumaça como o tal “tratamento precoce”, sem nenhuma comprovação de que funcione.

Valor: Aliás, o presidente Jair Bolsonaro já anunciou que não vai se vacinar. Quais os possíveis impactos desse tipo de atitude?

Hallal: Ele é o único chefe de Estado que disse que não vai se vacinar, mas, na verdade, vai - caso contrário, não entra em nenhum outro país do mundo, o que é inviável em se tratando de presidente da República. Quando ele rechaça a vacina, é só para causar dano à população, pois é natural que muita gente siga o que diz o presidente.

Valor: O ministro Eduardo Pazuello se diz um especialista em logística. Está fazendo jus ao título?

Hallal: É por causa disso que eu falo em duplo fracasso do Ministério da Saúde. Primeiro, porque sempre teve uma política errática, mas muitos relevavam porque pensavam que, chegando a vacina, o ministro, sendo especialista em logística, faria tudo dar certo. E aí, quando se esperava a discussão real sobre logística, estamos discutindo se vai ou não ter agulhas e seringas. A sorte é que o Brasil, historicamente, tem boa estrutura para campanhas de vacinação em larga escala. É a nossa esperança