O globo, n.31900, 08/12/2020. Mundo, p. 23

 

Menos voto, mais poder

08/12/2020

 

 

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, recuperou na madrugada de ontem o controle do Parlamento, cinco anos depois deperdera maioria na Assembleia Nacional (AN), graças à vitória do chavismo nas eleições legislativas de domingo, boicotadas pelos maiores partidos da oposição e marcadas por uma elevada taxa de abstenção, de quase 70%, segundo os números oficiais. O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e seus aliados do Grande Polo Patriótico receberam 68,43% dos votos contabilizados com mais de 98% das urnas apuradas, anunciou Indira Alfonzo, presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

—Feliz madrugada da vitória — celebrou Maduro em entrevista coletiva ontem. —Nasce uma nova Assembleia Nacional, nasce uma nova esperança. Muito trabalho está por vir.

‘REJEIÇÃO É EVIDENTE’

Segundo a presidente do CNE, 6.251.080 eleitores venezuelanos participaram do pleito, o que representa 30,5% da lista eleitoral de 20,7 milhões de pessoas aptas a eleger os 277 deputados da Assembleia Nacional. Nas legislativas de 2015, quando a oposição rompeu 15 anos de hegemonia chavista no Legislativo, a taxa de participação foi de 74%. Em 2010, o índice alcançou 66,45%.

Das 277 cadeiras do Parlamento, 116 já estão definidas, informou Alfonzo. Ainda não se sabe quantas cadeiras ficarão nas mãos do Grande Polo Patriótico, mas entre os eleitos estão a primeira-dama Cilia Flores e Diosdado Cabello, vice-presidente do PSUV.

Os principais partidos políticos de oposição, liderados pelo deputado Juan Guaidó, chamaram as legislativas de “fraude” e pediram à população que ficasse em casa.

— A fraude foi consumada. A rejeição majoritária do povo da Venezuela é evidente. A maioria da Venezuela deu as costas a Maduro e sua fraude — declarou Guaidó, em referência à abstenção, em vídeo publicado nas redes sociais.

Guaidó convocou uma consulta virtual de ontem a 12 de dezembro para prolongar o mandato do atual Parlamento até que seja possível organizar “eleições livres, verificáveis e transparentes”. Será uma consulta simbólica, pois Maduro exerce controle territorial e institucional com o apoio das Forças Armadas. Um outro problema é que o país tem um dos mais baixos índices de conectividade digital do mundo.

Além disso, uma pesquisado Instituto Datanálisis feita pouco antes das eleições mostrou que 55,6% dos venezuelanos considerariam ilegítima a prorrogação do mandato da atual Assembleia Nacional sem o aval do voto popular. A mesma pesquisa mostrou que tanto Maduro quanto Guaidó têm altos índices de avaliação negativa, chegando a 81,8% no caso do presidente e a 67,4% no caso do opositor.

Por sua vez, o Brasil e outros 15 países do Grupo de Lima publicaram declaração conjunta questionando a legitimidade das eleições, classificadas de “fraudulentas”, e pedindo que a comunidade internacional a poi e os esforços para a“recuperação da democracia, do respeito pelos direitos humanos e do Estado de Direito na Venezuela”. A União Europeia seguiu no mesmo caminho e disse que não considera que as eleições foram livres nem limpas e “fracassaram em seguir os padrões internacionais mínimos e em mobilizara população venezuelana para votar”. Nemo Grupo de Lima nema UE disseram o que farão em relação a Guaidó.

Apesar do boicote promovido por Guaidó e aliados, uma ala da oposição apresentou candidatos, incluindo os partidos tradicionais Ação Democrática e Copei. Os dois últimos defendiam o veto, mas mudaram de posição depois que o Supremo Tribunal de Justiça, controlado pelo governo, entregou o comando das formações a rivais de Guaidó.

Das agremiações opositoras que participaram, reunidas em coalizões, a Aliança Democrática (Ação Democrática, Copei, Avanço Progressista e El Cambio) alcançou até agora 17,52% dos votos, enquanto a Aliança Unida da Venezuela (Primeiro Venezuela, o setor do Vontade Popular sob intervenção do TSJ e Venezuela Unida) angariou 4,15%. O Partido Comunista da Venezuela teve 2,7%, e outras organizações, 6,48%.

A abstenção de domingo foi a maior em eleições legislativas desde 2005, quando só 25% dos eleitores votaram. Na época, a oposição também não participou da votação ao alegar que não havia condições para o pleito.

BOICOTES SUCESSIVOS

Os principais partidos de oposição já haviam boicotado a eleição presidencial de 2018. Ao acusar o chefe de Estado de reeleição fraudulenta, a maioria opositora do Parlamento declarou Maduro “usurpador”, e Guaidó, que presidia o Legislativo, se autoproclamou presidente interino da Venezuela, com o apoio de mais de 50 países, incluindo os Estados Unidos e o Brasil.

A votação de 2018 teve participação de 46,07% dos eleitores, a menor taxa para uma eleição presidencial na era democrática venezuelana, que começou em 1958.

— Tivemos paciência para nos livrarmos desta Assembleia Nacional nefasta que trouxe a praga das sanções — declarou Maduro no domingo ao votar na principal instalação militar de Caracas, o Forte Tiuna, depois de mudar o local de votação no último minuto.

Desde que a oposição conquistou a maioria da AN em 2015, Maduro tomou medidas para esvaziar seu poder, incluindo a convocação em 2017 de uma Assembleia Constituinte dominada pelo PSUV que na prática passou a atuar como Legislativo e será dissolvida quando os eleitos agora tomarem posse, em 5 de janeiro.

Brasil e países do Grupo de Lima chamam eleição de ‘fraudulenta’