O globo, n.31898, 06/12/2020. Mundo, p. 43

 

Europa controla segunda onda e tenta evitar terceira

Ana Rosa Alves

06/12/2020

 

 

Na Europa, a iminência de campanhas de vacinação contra a Covid-19 gera otimismo de que o pesadelo pandêmico esteja perto do fim. A euforia, no entanto, mascara uma realidade mais complexa: passarão meses até que parte significativa da população seja imunizada, em especial aqueles que não se enquadram em nenhum grupo prioritário ou de risco. Até lá, ressaltam especialistas e autoridades, cautela e distanciamento devem ser as palavras de ordem. Teme-se que o relaxamento natural despertado pela boa nova da vacina, somado à exaustão coletiva e às festas de fim de ano, desencadeie um novo aumento dos casos no continente, onde a segunda onda foi ainda mais letal que a primeira. Apenas no mês de novembro, mais de 5 milhões de cidadãos da União Europeia (UE) foram infectados e 91,4 mil morreram — número mensal mais alto desde que a crise começou.

Hoje, na Itália, o número de mortes diárias é similar ao de março, quando o país era o epicentro global da pandemia.Na Alemanha, o cenário é um pouco pior, e na França, na Espanha e no Reino Unido, ligeiramente melhor. Desta vez, as nações mais atingidas são as do Centro e do Leste Europeu. Rápidos ao impor quarentenas há nove meses, países como Polônia, República Tcheca e Bulgária agora lidam com hospitais superlotados e equipes médicas sobrecarregadas. Na maior parte do bloco europeu, os novos casos estão em queda há semanas, e mortes e internações seguem pelo mesmo caminho, um sinal de que as quarentenas que voltaram a ser impostas para controlá-los foram relativamente bem-sucedidas. Os números absolutos, contudo, permanecem altos —na última semana, a média móvel dos diagnósticos foi quase 4,3 vezes maior do que no pior momento do surto inicial, em abril. Como basta um descuido para que o contágio volte a crescer, o nível de alerta é alto, mesmo enquanto as restrições são abrandadas.

SEM MISSA DO GALO

O dilema da vez é como conciliar as tradicionais reuniões familiares e de amigos no Natal e no Ano Novo, a importância das festas para a economia e os riscos de contágio, acentuados pela chegada do inverno. Com a queda das temperaturas, a tendência é que as pessoas passem mais tempo em ambientes fechados, cenário naturalmente propício para doenças infecciosas transmitidas por via aérea. Não há unanimidade sobre como proceder frente a essa situação. Na Espanha, atualmente, são permitidas reuniões de grupos de até seis pessoas — número que, no Natal e no Ano Novo, será ampliado para até 10 pessoas, mesma quantidade que na Alemanha. Nas noites dos dias 24 e 31, o toque de recolher no país ibérico será prorrogado das 23h para 1h30, e viagens inter-regionais só serão permitidas para visitar parentes.

Na França, o governo anunciou que permitirá viagens domésticas a partir do dia 15 apenas se os novos casos diários caírem para 5 mil. Hoje, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, estão ao redor de 12mil. No outro lado do Canal da Mancha, reuniões de fim de ano serão limitadas a moradores de até três residências diferentes. Eventos em centros religiosos e espaços a céu aberto também serão permitidos, respeitando as diretrizes de distanciamento. Os italianos, por suavez ,enfrentarão restrições mais duras: não haverá nem a tradicional Missa do Galo, celebrada à meia-noite do dia 24. Viagens domésticas só serão permitidas em casos urgentes, eo governo fez um apelo para que seus cidadãos não recebam amigos e parentes em casa durante as celebrações.

—É bastante provável que as festas de fim de ano piorem a situação, a questão é simplesmente quanto — disse ao GLOBO Jeffrey Lazarus, do Instituto de Saúde Global (IS-Global), de Barcelona.

— Os problemas são esperados, mas eles só deverão começar a ser sentidos no meio ou no fim de janeiro, quando casos e mortes começarem a ser reportados.

A SEGUNDA ONDA

Para o pesquisador, não se pode descartar que um novo aumento de casos venha ainda antes, no fim de dezembro — uma consequência do alívio das quarentenas e de descuidos propiciados pelo alívio que a notícia da vacina traz. Os impactos disso, em um continente que ainda não conseguiu se recuperar por completo do surto anterior, podem ser significativos.

Os primeiros sinais de uma segunda onda começaram já em agosto, dois meses depois de as quarentenas impostas em março e abril chegarem ao fim. Em paralelo, o bloco começava a implementar planos para viagens internas durante o verão, principal ganha-pão do setor turístico europeu. A pressa para recuperar as perdas econômicas —os confinamentos levaram a Europa à pior recessão desde a Segunda Guerra — fez com que muitos governos abrandassem suas restrições mais rapidamente que o recomendado pelas autoridades de saúde. Os ganhos nesse período, entretanto, foram apagados pela segunda onda.

“Agora está claro que nós suspendemos rápido demais as restrições no início do verão”, disse por e-mail Martin McKee, professor da Escola de Medicina Tropical e Higiene de Londres. “Isso permitiu ao vírus se espalhar rapidamente por muitos países. É importante não repetir o erro.”

Quando os casos voltaram a crescer gradualmente, ainda nos meses de verão, novas quarentenas eram vistas com ceticismo. Além de seus impactos no mercado, a popularidade das medidas não era das maiores entre uma população já fatigada do annus horribilis de 2020. No Leste Europeu, em particular, eleições, informações falsas e retórica populista ajudam a criar e a propagar uma sensação de falsa normalidade. Países que agiram rapidamente, como Dinamarca, Finlândia e Irlanda, tiveram sucesso em evitar uma piora expressiva, mas esta não foi a regra. As medidas mais contundentes, via de regra, vieram em resposta à explosão dos casos em outubro, mês que começou com uma média de 41,7 mil casos confirmados por dia e terminou com 194,7 mil diagnósticos diários.

As regras vieram em uma versão mais amena da quarentena do início do ano. O confinamento total deu lugar a toques de recolher, restrições ao comércio, reuniões e ao funcionamento de bares e restaurantes, por exemplo. Escolas, via de regra, permaneceram abertas. As medidas foram suficientes para controlar as infecções, mas não para reduzi-las ao patamar de maio e junho.

DESAFIOS DA VACINAÇÃO

O novo relaxamento coincide com o anúncio de campanhas de vacinação nas próximas semanas e meses. Na França e em Portugal, que garantiram a vacinação gratuita para toda a população, a imunização deve começar em janeiro, priorizando profissionais da saúde e grupos de risco. No Reino Unido, primeiro país ocidental a autorizar uma vacina para o coronavírus, a aplicação deve começar amanhã. A calma, no entanto, é fundamental.

—As vacinas serão disponibilizadas primeiro para os mais vulneráveis, algo que deve durar até a Páscoa. A população em geral só deverá ser vacinada no fim do primeiro semestre, início do segundo. Só aí podemos começar a pensar em um retorno ao normal — disse Michael Head, pesquisador da Universidade de Southampton. Os impactos da imunização, ele crê, deverão ser sentidos progressivamente: a imunização de idosos e pessoas com comorbidades prévias deve reduzir aos poucos as mortes e internações. Os desafios de uma campanha de vacinação dessa escala, por sua vez, não podem ser menosprezados.

No caso da vacina da Pfizer, que será aplicada no Reino Unido, há um complicador: ela precisa ser congelada, ao contrário de muitas outras que precisam ser apenas resfriadas. Como a infraestrutura para armazená-la ainda está em vias de implementação, a aplicação das primeiras doses acontecerá em hospitais cujas equipes, muitas vezes, já estão sobrecarregadas.

Outro desafio é a falta de confiança pública na vacina. Seu processo de criação e aprovação, que habitualmente demora até 10 anos, levou 10 meses. O diretor da sucursal europeia da Organização Mundial da Saúde, Hans Kluge, disse entendera a preensão, mas que é essencial se informar por fontes confiáveis: — Vacinação salva vidas, medo as põe em risco — afirmou na semana passada. Para Head, a preocupação é razoável, mas as evidências científicas de segurança são contundentes, ao menos no que diz respeito às três principais vacinas desenvolvidas no Ocidente (a da Pfizer, da Moderna e da Universidade de Oxford). —O recrutamento para as fases de teste geralmente demora muito, mas o público se prontificou e voluntariou em ampla escala — afirmou, ressaltando o esforço coletivo sem precedentes, mesmo às custas de outras pesquisas. —Não houve atalhos, a pesquisa foi feita com o maior rigor científico.