O globo, n.31896, 04/12/2020. Mundo, p. 30

 

Recados de Biden

Janaína Figueiredo 

04/12/2020

 

 

Os primeiros contatos do presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, com governos da região foram telefonemas aos chefes de Estado da Argentina, o peronista Alberto Fernández; do Chile, o direitista Sebastián Piñera; e da Costa Rica, Carlos Alvarado Quesada, um líder de centroesquerda de apenas 38 anos. Se em outras épocas os primeiros da lista foram México, Brasil e Colômbia, com B id enas prioridades claramente mudaram, em sintonia coma atitude dos três governos ignorados, por enquanto, pelo sucessor de Donald Trump.

Os presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e do México, Andrés Manuel López Obrador, ainda não reconheceram a vitória de Biden. O colombiano Iván Duque parabenizou o americano e se dispôs a trabalhar juntos, mas o embaixador da Colômbia em Washington, Francisco Santos, fez campanha por Trump, assim como importantes congressistas do Centro Democrático, partido de Duque. Se no caso de México e Colômbia existe uma necessidade inegável e mútua de reconstruir a confiança perdida, para o Brasil o processo será mais difícil, opinaram especialistas. A posição de Bolsonaro foi a mais radical de todas — incluindo acusações de fraude na eleição americana — e o vínculo bilateral não tem, para os americanos, o mesmo peso da relação com México e Colômbia.

‘CONSTRUIR PONTES’

A atitude de López Obrador esteve relacionada à sua derrota nas eleições de 2006, nas quais foi batido pelo ex-chefe de Estado Felipe Calderón (2006-2012). O presidente continua insistindo em que foi vítima de fraude. Ele afirmou que não faria com outro o que lhe fizeram, lembrando que em 2006 vários presidentes, na sua avaliação, se precipitaram ao reconhecer o triunfo de Calderón. Na visão de especialistas como Antonio Ortiz Mena, professor da George towned o Centro de Pesquisa e Docência Econômica ,“apostura de Ló pez Obrado rera desnecessária e terá custos para o México”.

— A relação bilateral com os EUA requer confiança e uma via institucional. Com Obama, tínhamos ambos, e com Trump, apenas a confiança pessoal. Com Biden, teremos instituições que se relacionam, mas faltará o trato direto e fluido entre os presidentes —explicou.

A agenda bilateral inclui questões centrais para os dois países, como combate ao narcotráfico, crime organizado, o novo tratado comercial entre México, EUA e Canadá e imigração. Para os mexicanos, disse Mena Ortiz, seria essencial reativar programas como o Daca, implementado por Barack Obama para regularizar imigrantes que chegaram aos Estados Unidos quando eram menores de idade.

— A rejeição ao Daca é símbolo do trato desumano e racista aos imigrantes por parte de Trump. Relançar o programa seria um gesto fortíssimo de Biden — afirmou o especialista.

López Obrador deverá encontrar maneiras, ampliou Ortiz Mena, de “construir pontes e não muros”. Por parte de Biden, não se esperam retaliações ao México, mas sim uma atitude mais fria do que em outras épocas. O México é hoje o principal sócio comercial dos EUA, um comércio que movimenta US$ 1,5 bilhão por dia.

Com a Colômbia, também existe um vínculo bilateral considerado “necessário” por diplomatas colombianos. Questões como narcotráfico e cooperação militar são centrais na relação. Os EUA também têm grande interesse no processo de paz —no qual Biden se envolveu quando foi vice de Obama — ainda inconcluso, e que está diretamente relacionado à segurança regional e à produção de drogas no país. Existe, ainda, a Venezuela, que preocupa a ambos.

—Com Biden não será fácil recompor, porque o Centro Democrático apostou abertamente em Trump. Vai ser encontrado um caminho, mas não será uma relação especial, como outras do passado — opinou Sandra Borda, professora da Universidade dos Andes.

Ela espera do novo governo americano “mais exigências e mais rigor” com a Colômbia, por exemplo, em matéria de direitos humanos.

Para fontes do governo brasileiro, o fato de Bolsonaro ainda não ter reconhecido a eleição de Biden não deve ser dramatizado. Está sendo esperado o momento adequado, disseram, apontando o dia 14 de dezembro como uma possibilidade. Nesse dia, o Colégio Eleitoral dos EUA vai se reunir e formalizar a escolha do novo presidente, ocasião que só ganhou relevância neste ano porque Trump se recusa a reconhecer explicitamente a derrota. Uma das fontes frisou que o reconhecimento “vai chegar no momento adequado”.

Há incertezas sobre como o novo governo americano olhará para o Brasil e a que aspectos dará prioridade. Diferentemente de México e Colômbia, não existe uma agenda essencial para brasileiros e americanos. Se o foco de Biden for Amazônia, o governo brasileiro admite que o relacionamento será complicado. A mesma fonte disse que Brasília vai “esperar e ver a realidade da nova situação”.

 ‘EMBATE VERBAL PREJUDICIAL’

Para embaixadores de longa trajetória como Roberto Abdenur, que chefiou a sede diplomática de Washington, as primeiras escolhas de Biden no continente refletem “ecletismo e a decisão de conversar com todos os países, independentemente de suas tendências políticas ”.

—Bolsonaro partiu para um embate verbal que só vai nos prejudicar, e hoje o diálogo está inviabilizado. O presidente do Brasil deverias ero primeiro a abriras portas de uma comunicação bilateral—lamentou Abdenur.

Para o embaixador, o futuro imediato dependerá, acima de tudo, “da habilidade dos diplomatas americanos” e do grau de interesse em tentar uma aproximação no curto e médio prazo. Prioridades mudaram com Biden, em sintonia com atitudes dos três governos