O Estado de São Paulo, n.46335, 27/08/2020. Economia, p.B3

 

Sem cortes, benefício fica como o do Bolsa Família

Idiana Tomazelli

Jussara Soares

27/08/2020

 

 

Equipe econômica tenta encontrar uma solução para abrir espaço no Orçamento

Após o presidente Jair Bolsonaro vetar o corte de alguns benefícios sociais atuais, como o abono salarial, para turbinar o valor médio que será pago no Renda Brasil, a equipe econômica tenta encontrar outra solução para abrir espaço no Orçamento. Mas uma ala já admite que o novo programa pode acabar com um desenho "não tão diferente" do valor do benefício e do alcance do Bolsa Família.

Isso porque o governo precisa cumprir a regra do teto de gastos, que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. Como Bolsonaro sinalizou que não quer revisar os programas que já existem hoje, mesmo os considerados ineficientes, o caminho teria de ser formular o Renda Brasil, pensado para ser a marca social do governo, com um gasto semelhante ao do Bolsa Família.

A avaliação na área econômica é que a revisão do abono salarial era "fundamental" para criar espaço no Orçamento para bancar o novo programa, que teria maior alcance e valor de benefício que o Bolsa Família. Bolsonaro defende um benefício de R$ 300 (o benefício médio do Bolsa Família é de R$ 190) e inclusão de uma parcela de pessoas que hoje recebem o auxílio emergencial, mas que não eram beneficiárias do programa criado na gestão petista. Só a extinção do abono, uma espécie de 14.º salário pago a trabalhadores com carteira assinada, poderia liberar R$ 20 bilhões.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em agosto de 2019, mostra que 39% dos benefícios do abono são pagos a um terço mais rico da população, que inclui pessoas com renda familiar por pessoa acima de R$ 1.010 a R$ 150 mil (em 2018).

Apenas 16% do abono salarial vai para o terço mais pobre, ou seja, quem tem renda familiar per capita até R$ 479. Outros 45% vão para aqueles com renda familiar por pessoa entre R$ 479 e R$ 1.010.

A realidade é bem distinta do Bolsa Família, que custa cerca de R$ 30 bilhões por ano e paga 77% dos benefícios para o terço mais pobre dos brasileiros.

A distorção no abono é possível porque o benefício é pago a trabalhadores com carteira assinada que ganham até dois salários mínimos (hoje o equivalente a R$ 2.090). Seu critério de concessão não analisa a renda familiar. No limite, o filho ou cônjuge de uma pessoa com renda mais elevada pode ter direito ao abono caso o próprio salário fique dentro do limite de dois pisos.

Além disso, quase metade do abono salarial é paga a trabalhadores da Região Sudeste, enquanto o Nordeste (onde a taxa de pobreza é o dobro da média nacional) fica com 22,4% do benefício. Na análise do Ipea, a contribuição do abono para a redução da pobreza no País é equivalente a zero.

Alcance. Segundo dados do governo, dos 24,5 milhões de trabalhadores elegíveis ao abono salarial entre 2019 e 2020, apenas 8,6 milhões ganhavam até um salário mínimo (35% do total). Em termos de gastos, os trabalhadores que recebiam o piso nacional respondiam por uma despesa de R$ 3,95 bilhões do abono (21% do gasto total de R$ 19,1 bilhões).

Além do abono, estão na mira dos técnicos mais de 20 ações do governo, como o seguro-defeso (pago a pescadores artesanais no período de reprodução dos peixes, quando a pesca é proibida), entre outros. Nenhum, porém, renderia uma economia tão vultosa quanto o abono.

No início de sua gestão, Bolsonaro deu aval a uma proposta de redução do alcance do abono salarial, que foi incluída na reforma da Previdência, mas acabou sendo rejeitada pelos parlamentares. A percepção dentro do governo, porém, é que o momento político agora é outro e o custo político da proposta da Economia é alto para quem quer elevar sua popularidade.

Um novo encontro de Bolsonaro com ministros foi marcado para amanhã, mas ainda não foi oficializado pelo Planalto. Segundo apurou o Estadão, técnicos que trabalham no desenho do Renda Brasil se reuniram ontem para dar início aos ajustes pedidos pelo presidente, que quer uma solução sem passar pela revisão do abono.

Cenário

R$ 300

é o valor do benefício defendido por Bolsonaro para o Renda Brasil; valor médio pago pelo Bolsa Família é de R$ 190