Título: Uma receita chinesa para brasileiros
Autor: D"Angelo,Marcello ; Assis, Jaime Soares de
Fonte: Jornal do Brasil, 15/09/2008, Economia, p. A18

Presidente da Câmara Brasil-China diz que país precisa de um choque de oferta para crescer. SÃO PAULO

O volume de negócios em an- damento entre empresas brasileiras e chinesas poderá alcançar US$ 10 bilhões. A cifra envolve projetos conjuntos com grandes grupos industriais dos dois países e investimentos de companhias chinesas no mercado brasileiro em fase de implantação. As operações avançam em áreas que vão da bioquímica ao minério de ferro, passando pela produção de alumínio.

Responsável pela aproximação de muitos parceiros comerciais, Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, cumpre uma rotina pesada de reuniões diárias para discutir desde a entrada de montadoras chinesas no mercado brasileiro a contatos entre produtores de cana-de-açúcar e grupos empresariais brasileiros do setor de química fina interessados na produção de aminoácidos a partir do etanol.

O Brasil, na opinião de Tang, precisa se inspirar nos tigres asiáticos e dar um choque de oferta para acabar com a instabilidade monetária. Esta guinada tiraria do país esta recorrente incapacidade de gerar riqueza e faria com que os brasileiros parassem de "administrar a pobreza". Os chineses também enfrentam dificuldades que se originam do crescimento acelerado.

Graduado pela Universidade de Cornell, dos Estados Unidos, Tang circula entre os escritórios na China, Brasil e contatos com familiares em Nova York (EUA). Sua relação com o país remonta a três décadas e está ligada ao surgimento do segmento de leasing. Precursor deste mercado, foi o fundador de 11 companhias do setor. A primeira a operar no país foi montada por Tang no BankBoston. Ao sair da instituição, pôde acompanhar o início da carreira de Henrique Meirelles, contratado pelo banco para gerenciar a empresa que acabara de criar. Nesta entrevista ao Jornal do Brasil e à Gazeta Mercantil, Tang analisa a estratégia de negócios da China e as oportunidades que oferece aos investidores brasileiros.

O que é necessário para di- namizar a relação comercial entre o Brasil e a China?

-­ Desde que o mundo virou mul- tipolar, com a China como uma potência econômica em escala mundial e a unificação da Europa, a parceria estratégica e comercial entre os dois gigantes se torna cada vez mais importante. Quando a China assumiu a posição de locomotiva mundial, um dos países que mais se beneficiaram com isso foi o Brasil, que acumulou US$ 200 bilhões de reservas. Essa parceria estratégica é recente e deve aumentar cada vez mais. Em 1999, a corrente comercial entre os países foi de US$ 1,5 bilhão e até o fim do próximo ano deve estar em mais de US$ 30 bilhões. Cada vez mais a China terá de investir no Brasil para assegurar os produtos estratégicos que tanto necessita para o seu crescimento continuado e para alimentar seu povo.

Em quais áreas os chineses têm interesse em investir no Brasil?

-­ Nas áreas ligadas a produtos es- tratégicos, como minério e usinas de aço. Para a China, em vez de transportar minério, é melhor embarcar o aço, por causa do frete. Em vez de importar bauxita, vamos importar alumínio. A Chalco (Aluminum Corporation of China Limited) vai investir junto com a Companhia Vale do Rio Doce (Vale) entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões (em produção de alumínio). Provavelmente vamos comprar também muita terra para plantio de soja e criação de gado.

Já existe algum empreendimento no agronegócio com capital chinês?

-­ Os chineses trouxeram um in- vestimento em biotecnologia para produzir aminoácidos com um usineiro brasileiro. O representante da usina já foi à China, os chineses, do BBCA Group, já vieram ao Brasil. O país pode ser o maior fabricante mundial de bioquímicos e bioplásticos com a cana-de-açúcar. Em vez de usar a cana só para álcool e açúcar, pode fazer um produto nobre que vale 4 ou 5 vezes mais, que seriam os aminoácidos.

A China tem um fundo so- berano com um volume expressivo de recursos. Parte deste capital pode vir para o Brasil?

-­ Além de investir nestes produtos siderúrgicos, minas, minérios e soja, os chineses também têm interesse em participar de obras de infra-estrutura junto com empreiteiras brasileiras ou até de forma isolada, como está fazendo na termelétrica de Candiota, a carvão, com nova tecnologia não poluente. Estamos tratando de outra usina termelétrica para Santa Catarina. Traremos as montadoras de automóveis e fábricas de vidros planos, porque o Brasil não tem capacidade para atender a demanda. São vários projetos que devem envolver recursos chineses para o Brasil e estamos ajudando vários brasileiros a investir na China.

Os investimentos que a Chi- na está disposta a fazer no Brasil podem chegar a que montante?

­- Se colocarmos Baosteel, são US$ 6 bilhões. Quando se fala da Chalco, nos referimos a mais US$ 2 bilhões. Os projetos de vidro plano e montadoras de automóveis somam mais de US$ 1 bilhão. Tudo pode chegar a US$ 10 bilhões, fora a área de petróleo e gás.

Quais projetos novos estão em andamento?

-­ Estamos ajudando uma grande indústria farmacêutica chinesa a comprar uma empresa do setor no Brasil. O presidente da maior fábrica de sondas de prospecção de petróleo, tanto terrestres quanto marítimas, está interessado em montar um estaleiro no país. Estamos falando de investimentos chineses na área de petróleo e gás, bioquímica e também química fina.

Como o governo chinês ajuda nestes investimentos?

-­ O governo chinês encoraja as empresas de maior experiência internacional a investir cada vez mais fora do país. A China tem um grande problema. Ela está com US$ 2 trilhões em reservas, se somarmos Hong Kong e Macau. Isso é bom e é ruim também. Traz problemas de pressão inflacionária porque é preciso emitir moeda local. A China perde por ter suas reservas em dólar com a desvalorização da moeda norte-americana. Por isso existe o fundo soberano para tentar conseguir um retorno um pouco melhor.

Mas há vantagens. -­ Uma vantagem é que o país, com US$ 2 trilhões em reservas, pode acelerar a inclusão social do povo chinês. Nos últimos 25 anos a China conseguiu realizar a maior conquista em direitos humanos ao tirar 480 milhões de pessoas da pobreza para viver com maior dignidade e participar da vida econômica do país. Com este dinheiro, ela pode acelerar este processo. A China está gastando muito para reduzir a poluição e tem de importar energia limpa do Brasil, na forma do bom etanol que é de cana, e não a energia do mau etanol, feito a partir do milho.

Quais são as novas oportu- nidades de negócios na China no momento?

-­ O custo Brasil e o modelo eco- nômico brasileiro fazem com que os empresários nacionais que queiram crescer e expandir sejam forçados a gerar emprego fora do Brasil, em países de menor custo. E a China é um deles. Apesar de tudo isto, existem muitos nichos no mercado chinês para a indústria brasileira. A Embraer já tem pedido de 100 aviões. A Fame está vendendo chuveiros elétricos. Antes da Fame entrar no país, para se ter água quente era necessário instalar um boiler caro. Para a empresa, o mercado para chuveiros elétricos é de 1,37 bilhão de pessoas porque o produto custa US$ 10. Mesmo quem não está participando da vida econômica tem US$ 10.

Há outros espaços para as em- presas brasileiras?

-­ Há mercado para o café brasileiro. No período de ausência das indústrias brasileiras no país, os chineses aprenderam a tomar café da Suíça e dos EUA, que não produzem café. Passaram a tomar suco de laranja da Europa, que não tem laranja, e importam móveis de couro e madeira da Itália, que não tem nem couro nem madeira. Temos que recuperar estes mercados e estamos fazendo isso. Há seis anos e meio, em uma palestra na Associação Comercial e Industrial de Novo Hamburgo (RS), disse aos calçadistas que existia um gigantesco nicho de mercado para eles na China. Se tivessem feito alguma coisa na época, muitos não teriam fechado. Recentemente a Arezzo foi ocupar este espaço. A mulher chinesa que tem dinheiro compra calçados caríssimos italianos ou os chineses, que não são tão atraentes. Os descendentes italianos do Brasil poderiam exportar calçados finos para a China.

"Brasil pode ser uma superpotência"

Qual é o legado dos Jogos Olímpicos para o país?

­- As Olimpíadas projetaram a China para o mundo e as pessoas tiveram a chance de apagar um pouco da imagem errada que tinham do país. Muitos brasileiros acham que o país se resume a produtos de má qualidade e trabalho escravo. A projeção obtida com as Olimpíadas ajudou a eliminar muitos conceitos errados e chamou a atenção das pessoas para fazer negócios com a China.

Um dos maiores iate clubes do mundo está em construção na China. O número de bilionários cresceu no país?

-­ Os Estados Unidos são o número um, com 420 bilionários e a China é o segundo colocado com 240. A matriz de tudo isto é o capitalismo.

Que lição a economia bra- sileira poderia tirar do modelo chinês?

-­ O monetarismo é uma teoria brilhante e útil de administração pública que usa crédito, juro e instrumentos ficais para esta finalidade. No Brasil, esta teoria foi utilizada como a solução de todos os problemas de crescimento. E assim, plano após plano monetarista, ficamos cada vez mais pobres e não conseguimos crescer. Somos tão bons administradores monetaristas que temos a fama de ser os melhores administradores de pobreza do mundo. Com a incapacidade de gerar riqueza, a gente sabe sim, e muito bem, administrar a pobreza.

Como sair desta armadilha?

-­ Nos últimos 30 anos a prioridade chinesa foi prosperidade a qualquer custo, mesmo com algum impacto ambiental e desigualdade social. No Brasil, a prioridade sempre foi estabilidade monetária, mesmo mantendo a economia estagnada e a pobreza sustentada. Sempre que a economia ameaça crescer, se aumenta a taxa de juros para abafar esta tentativa de expansão porque ela pode atrapalhar a estabilidade da moeda. Há alternativas.

Mas é necessário conter a inflação.

- Só aprendemos a cortar a demanda. Nunca aprendemos a fazer como os tigres asiáticos, a dar um choque de oferta para acabar com a instabilidade monetária. É possível criar estabilidade monetária no equilíbrio entre oferta e demanda em patamares menores ou maiores, com crescimento econômico, aumentando a oferta. No Brasil temos uma fábrica de bicicletas, na China há 500. O país não tem nenhuma fábrica de locomotivas e vagões. A China tem 28. Desde os anos 60, os tigres asiáticos utilizaram custos baixos não só de mão-de-obra mas decorrente também da eliminação de entraves, sem uma CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) onerosa e draconiana, sem os maiores juros do mundo e com câmbio favorável para poder gerar riqueza com a exportação.

A China também tem uma preocupação com inflação. Como ela lida com isto?

-­ Há cinco anos, a China está tentando combater o seu crescimento demasiado para conter a inflação que as reservas, as exportações em excesso provocam. O governo chinês já aumentou a taxa de juros mais de oito vezes nos últimos dois anos, aplicou taxas de redesconto bancário para enxugar liquidez, tirou até a devolução fiscal sobre praticamente todos os produtos de exportação. As autoridades governamentais estão sobretaxando as exportações de aço e cimento e de produtos que causam mais poluição ou demandam mais energia. Brinco com meus colegas da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) que o maior parceiro deles em relação a salvaguardas contra os produtos chineses é o governo da China.

Esta não é uma receita monetarista?

-­ O monetarismo é para usar na administração da economia do país e não para um programa de desenvolvimento. São duas coisas diferentes. Defendo a tese de que o Brasil tem muito mais condições do que China ou Japão de ser o maior tigre de exportações do mundo e ser uma superpotência mundial.

Apoiado somente em exportação de commodities ou em manufaturados?

-­ Baseado só em uma visão política de prosperidade de um líder que possa levar o país a realizar o brazilian dream. O Brasil é tão fácil de mudar que Juscelino Kubitschek, em um governo, transformou uma sociedade rural em uma economia industrial e o Fernando Collor de Mello, em menos de meio mandato, mudou o conceito do país e os sete planos e pacotes econômicos fizeram profundas reestruturações. Tudo começa com a visão de um líder, depois passa por um plano para a nação e planejamento estratégico de curto e longo prazos.

Por que este modelo não muda?

-­ O Brasil tem dois recursos que não explora e não compreende. Já vivi em muitos países e o povo brasileiro é um dos mais disciplinados e patriotas que existem. Não há povo mais necessitado do sonho e da esperança de dias melhores e o brasileiro aceita qualquer sacrifício para este sonho. Por isto é mais fácil mudar o país. A população sempre aceitou as demandas dos planos econômicos de imediato. Durante o governo Castello Branco, todos queriam doar ouro para pagar a dívida externa. No Plano Cruzado, queriam ser fiscais. No plano Collor, ninguém gostou do confisco, mas não houve panelaço. O problema não é o povo. Foram os pacotes econômicos que acabaram com a economia do país.

Qual é o outro recurso brasileiro importante?

-­ Não existem executivos e empresários como os brasileiros. Para poder sobreviver nesta economia tem que ser destemido, ter visão, criatividade, jogo-de-cintura e lutar para poder gerar emprego. O executivo japonês e o americano sabem tudo dentro daquela regra de jogo que não muda. Se for alterada, eles ficam perdidos. Por isso os brasileiros no exterior, quando não tentam ser espertos demais, alcançam grande sucesso.

Os executivos chineses estão bem preparados?

-­ Temos de recordar que a China em 25 anos saiu da pobreza para a riqueza. Quando começou sua caminhada e o primeiro ministro Deng Xiaoping apresentou seu plano de prosperidade para a nação, uma geração inteira de chineses não tinha estudado. Na revolução cultural, professores e alunos foram enviados para o campo para purificação da mente socialista. Mas mais de um milhão de chineses já estudaram nos Estados Unidos. Centenas de milhares foram educados nas universidades européias. Por isto a Fundação Getúlio Vargas (FGV) está criando um MBA executivo em Shanghai, com duração de três semestres, em inglês, para preparar executivos para esta crescente parceria entre Brasil e China. Quando os chineses vão aos EUA e à Europa, há muitos executivos que conhecem os dois países. Quando vêm para o Brasil, não se encontra ninguém que tenha este tipo de conhecimento.

Existe alguma estimativa quanto ao número de chineses que falam inglês?

-­ É um percentual muito pequeno dentro de uma população de 1,37 bilhão de pessoas. Entre os que fazem negócios, a porcentagem também é pequena. Os jovens chineses buscam cada vez mais estudar inglês. Os velhos chineses, que tomam decisões, ainda falam russo e alemão por conta da relação da China comunista com a Rússia e a ex-Alemanha Oriental.

Como as descobertas da camada pré-sal podem mudar o perfil da economia brasileira?

-­ Todo este dinheiro que já estamos gastando por conta não significa que teremos um país desenvolvido. Irã e Venezuela são exemplos de gigantescas receitas em petróleo em países subdesenvolvidos.

A China explora petróleo. Qual o tamanho das reservas?

-­ A China extrai duas vezes o petróleo que o Brasil produz e importa o dobro. Temos tecnologia, mas a melhor do mundo em águas profundas é a brasileira.