O Estado de São Paulo, n.46330, 22/08/2020. Espaço Aberto, p.A2

 

A batalha do século

22/09/2020

 

 

A pandemia abalou o mundo em meio a uma batalha épica entre o autoritarismo e a democracia. Nos últimos anos, as duas frentes engrossaram sua artilharia. Surtos autocráticos despontam por toda a parte, mas os protestos em favor da democracia viralizam. Este cenário efervescente é confirmado por duas bases de dados sobre o estado da democracia, uma mais subjetiva, o World Values Survey, e outra mais objetiva, o Democracy Report do Instituto Varieties of Democracy (V-dem). A primeira mensura as percepções e intenções da população; a segunda, princípios institucionais, como eleições, liberdade, participação, deliberação e igualdade.

Em 2019, Vladimir Putin declarou o liberalismo "obsoleto". Há fortes evidências de um declínio da democracia liberal. Conforme os indicadores do V-dem, pela primeira vez desde 2001 há mais autocracias do que democracias no planeta. São 92 países autocráticos (51%), que abrigam 54% da população mundial.

Segundo o V-dem, o mundo moderno atravessa uma "terceira onda" de autocratização. A primeira se formou nos anos 1920, após a consolidação do Estado Democrático de Direito no século 19, para estourar na 2.ª Guerra (a nossa Era Vargas). A segunda corresponde ao pico da guerra fria, entre 1960 e 1970 (os "anos de chumbo"). A terceira cresce desde os anos 90, com características sem precedentes. As anteriores eram dominadas por rupturas e tomadas ilegais do poder, como golpes militares, invasões estrangeiras ou autogolpes do Executivo. Agora, em 70% dos casos a autocratização se dá clandestinamente, por "erosão democrática", com seus agentes acessando legalmente o poder para, gradual, mas substancialmente, minar as instituições por meio de táticas como a intimidação da oposição, a subversão da prestação de contas horizontal e o inchaço do Poder Executivo.

Sintomaticamente, a União Europeia tem pela primeira vez um membro não democrático: a Hungria. Tendências autocráticas, segundo os índices de aferição, estão em curso em países do G-20, como Brasil, Índia, Turquia e, significativamente, os EUA. Ataques à liberdade de expressão e de imprensa recrudescem hoje em 31 nações, enquanto há dois anos eram 19. O índice de eleições livres declinou expressivamente em 16 nações e melhorou em apenas 12. A censura e a repressão à sociedade civil tiveram uma intensificação recorde em 37 países. A polarização tóxica, os protestos pró-autocráticos e a violência política também aumentaram em nações afetadas por tendências autocratizantes, como Brasil ou Polônia.

Por outro lado, cresce a resistência pró-democrática. Em 2019, a parcela de países com protestos populares em nome do Estado de Direito, eleições limpas e liberdade política subiu a um nível sem precedentes, de 27% para 44%. Em 29 democracias, como Bolívia e Polônia, houve mobilização contra ameaças autocráticas, e em 34 autocracias, como Argélia, Hong Kong e recentemente Bielorússia e Tailândia, os cidadãos foram às ruas, em muitos casos, como no Sudão, com conquistas substanciais. Na última década, em 22 países os protestos pró-democráticos foram seguidos por ondas democratizantes.

O cenário ambivalente é confirmado pelo World Values Survey. Em resumo, as opiniões da população mundial mostram que a inclinação por soluções autoritárias cresceu na maioria das regiões do mundo. Um dado alarmante é que os jovens tendem a ser mais suscetíveis a preferências autocráticas, assim como as pessoas menos educadas e as mais inclinadas à direita. Por outro lado, o apelo autocrático ainda é débil em democracias saudáveis.

No fim da guerra fria, Francis Fukuyama e outros proclamaram a eterna apoteose da democracia liberal. O malogro é evidente, a tal ponto que hoje muitos falam na "morte da democracia". A análise conscienciosa dos dados, contudo, mostra que há razões para alerta, mas não para pânico. "Assim como foi prematuro anunciar o 'fim da história' em 1992, é prematuro proclamar o 'fim da democracia' agora", conclui o V-dem. Em uma palavra: a batalha está em curso. Não é hora de se resignar ao pessimismo e muito menos ao otimismo. É hora de lutar.