O globo, n.31889, 27/11/2020. Sociedade, p. 15

 

Confiança em risco

Rafael Garcia 

Johanns Eller 

27/11/2020

 

 

A vacina contra Covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca em parceira com a Universidade de Oxford enfrenta questionamentos após a farmacêutica reconhecer um problema na dosagem do produto administrado em parte dos voluntários dos testes.

No início da semana, a empresa divulgou dados preliminares indicando eficácia de até 90% de seu produto, e disse que alguns dos indivíduos nos quais a vacinação teria funcionado melhor receberam apenas meia dose na primeira de duas aplicações. O que a AstraZeneca não deixou claro na ocasião é que isso havia sido fruto de um equívoco, o que colocou os resultados de eficácia sob o alvo de cientistas independentes. A segurança da vacina, já confirmada nas fases anteriores dos ensaios, não está sendo questionada.

A vacina de Oxford é uma das principais apostas do Brasil para tentar conter a epidemia de Covid-19 em 2021, com o governo federal tendo fechado acordo para produção de 100 milhões de doses da vacina pela Fiocruz.

Em entrevista à agência de notícias Reuters, Mene Pangalos, executivo da empresa, afirmou que o uso de meia dose foi uma coisa boa, porque se mostrou eficaz e permitiu economizar doses. Ele disse, então, que a decisão de usar a dosagem tinha sido fruto de um evento “fortuito”.

Quatro dias depois, a empresa reconheceu que era de fato um equívoco — apenas no braço britânico do teste clínico, não no brasileiro — e disse que notificou reguladores para propor uma correção. O estudo continuaria e a análise dos dados de eficácia seria feita com um tratamento estatístico para levar em conta que cerca de 2.800 voluntários receberam só uma dose e meia da vacina de duas doses.

Tanto a empresa quanto a universidade afirmam que as autoridades regulatórias do Reino Unido acataram o ajuste, e o estudo com mais de 30 mil voluntários concluiu uma análise provisória de resultados. A vacina se mostrou mais eficaz no subgrupo com a dosagem errada do que naquele que recebeu duas doses.

Quando a empresa entrou com pedido de autorização para uso emergencial da vacina nos EUA, autoridades contestaram a robustez dos dados. O jornal The New York Times divulgou que Moncef Slaoui, chefe do programa Warp Speed, criado pelo governo americano para acelerar o desenvolvimento de vacinas, questionou dados.

Segundo ele, o grupo onde se atestava 90% de eficácia não incluiria pessoas acima de 55 anos. Sem proteger os idosos, uma vacina de Covid-19 perderia apelo.

Com a comunidade acadêmica discutindo os resultados, ações da AstraZenenca na Bolsa de Valores de Nova York foram caindo. De segunda-feira até a tarde de ontem, a queda foi de 6%. Diante da crise, a empresa teve conversas com investidores para acalmá-los e chegou a divulgar dados até então não públicos. Relatório vazado do consultor de um banco de investimentos dizia que a vacina “nunca seria aprovada nos EUA”.

Ontem, a divisão brasileira da AstraZeneca se pronunciou por meio de nota, afirmando que as autoridades regulatórias tinham sido informadas da questão sobre a dosagem quando foi constatada.

“Essa constatação foi apresentada pelo time de estudo da Universidade de Oxford e revisada pelo Comitê Independente de Monitoramento de Segurança e Dados e pela agência reguladora do Reino Unido (MHRA), ambos os quais aprovaram a continuação deste regime de dosagem do ponto de vista clínico e científico”, disse a empresa.

O comunicado não mencionou se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão de regulação no Brasil, sabia do ocorrido, mas disse que “todas as demais autoridades regulatórias foram informadas de que continuaríamos a monitorar” os indivíduos sob meia dose.

Procurada pelo GLOBO, a Anvisa informou que a AstraZeneca repassou à agência apenas dados pré-clínicos por meio do processo de submissão contínua, adotado pelo órgão para acelerar o processo de análise e registro de vacinas.

“A AstraZeneca não submeteu os dados de fase clínica de pesquisa para a análise da Anvisa. Até o momento, os dados foram divulgados somente em anúncios da própria empresa dirigidos à imprensa”, disse a agência.

NOVO ESTUDO

Em entrevista à agência de notícias Bloomberg, o CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot, disse que deve ser necessário um estudo adicional para concluir as evidências de eficácia da vacina.

—Agora que descobrimos algo que parece ter uma eficácia melhor, temos que validar isso, então precisaremos de um estudo adicional —afirmou o executivo.

A empresa não liberou ainda os dados brutos da pesquisa para que a comunidade científica possa se debruçar sobre os números. “Esperamos a publicação dos resultados detalhados revisados por especialistas independentes, que agora foram submetidos à publicação em revista científica”, disse a empresa.

A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o Instituto D’Or (Idor), que participam do braço brasileiro do ensaio clínico, não se pronunciaram ontem. Não está claro se o plano de vacinar brasileiros no início de 2021 pode atrasar.

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Urgência não deve dispensar cautela na busca por imunizante

Ana Lucia Azevedo 

27/11/2020

 

 

Precisamos de uma vacina contra a pandemia. Mas o entusiasmo com bons resultados anunciados por laboratórios não deve nos fazer perder a cautela e cegar para aspectos fundamentais sobre segurança e eficiência. Uma aprovação de uso emergencial tem seu preço.

Em terreno incerto, nos arriscamos a comprometer a capacidade de testes mostrarem realmente se a vacina funciona.

Quando uma vacina recebe sinal verde, por exemplo, há pressão para que o grupo de controle dos testes — as pessoas que receberam placebo em vez do imunizante —seja vacinado. Mas se não houver um grupo significativo, será difícil avaliar efeitos adversos, eficiência e se o imunizante é capaz de tirar o coronavírus de circulação ou só impedir o agravamento da Covid-19.

As agências reguladoras têm um desafio colossal, o de conceder a licença sobre bases sólidas. Mas não há bases sólidas à vista. E uma evidência disso é a forma como os resultados são divulgados. A vacina de Oxford/AstraZeneca foi a quarta a informar sucessopormeiodepressrelease,eé exemplo retumbante da necessidade de cautela com afirmações desacompanhadas de evidências. A falta de publicação em periódicos científicos significa que não passaram pelo crivo de revisores.

Afirmações não podem ser engolidas sem reflexão. Faltou explicação para o maior êxito de meia dose (90%) em vez de uma cheia (62%). Foi fruto de uma falha na produção. E o laboratório optou por não corrigir o erro, mas adaptá-lo ao teste. Também não se explicou como a taxa de sucesso de 70% foi calculada. Uma hipótese é haver um viés demográfico não explicado. O grupo que recebeu a meia dose e teve 90% de eficácia não tinha ninguém com mais 55 anos. Já no grupo da dose cheia, com idosos, a eficácia foi de 62%.

Uma possibilidade é que a idade dos voluntários possa ter sido mais relevante para o maior sucesso desse grupo. Outra, um acaso estatístico.

Não são detalhes. São fatos que colocam em risco a confiança e precisam ser esclarecidos quando se fala em vacinar milhões de pessoas.