O globo, n. 31854, 23/10/2020. Sociedade, p. 10

 

A guerra política da vacina

Elisa Martins Naira Trindade Renata Mariz Victor Farias

23/10/2020

 

 

Agência diz que responderá em 5 dias a pedido feito em setembro

Um novo capítulo se somou à polêmica sobre a aquisição da vacina CoronaVac pelo Ministério da Saúde. Um dia após o presidente Jair Bolsonaro desmentir que o governo compraria o imunizante para a Covid-19 fabricado pelo laboratório chinês Sinovac, a direção do Instituto Butantan, em São Paulo, que tem parceria com a empresa chinesa, afirmou que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria atrasando a liberação de importação de insumos para produção da vacina no país.

Segundo o diretor-geral do Instituto Butantan, Dimas Covas, uma solicitação de importação de matéria-prima foi feita à Anvisa em setembro. Ontem, ele teria sido informado que o pedido só seria analisado pela Anvisa em reunião prevista para 11 de novembro, afirmou Dimas ao jornal Folha de S.Paulo.

À TV Globo, o diretor-geral disse ainda que “normalmente esse tipo de pedido tramita muito rapidamente, em dez dias”.

— Nós obtivemos uma resposta no dia de hoje (ontem) solicitando informações adicionais, portanto já quase 30 dias após o pedido inicial, e uma previsão de que o assunto será deliberado agora, no início de novembro.

Em nota, o Butantan afirmou que a demora de três semanas para deliberação pode impactar “as perspectivas de produção e disponibilização da vacina contra a Covid-19 para a população brasileira”. O instituto acrescenta que o pedido tem caráter excepcional para agilizar o fornecimento do imunizante, “contribuindo para salvar vidas e combatera pandemia ”.

“O Butantan espera que a Anvisa reavalie prazos e contribua para resguardara saúde pública e a proteção dos brasileiros”, conclui o instituto no texto.

A Anvisa desmente o impasse. Também em nota, diz que a resposta ao pedido de importação sairá em até cinco dias úteis. Afirma, ainda, que a solicitação do Butantan entrou em uma análise especial, chamada de circuito deliberativo, uma vez que a composição da diretoria colegiada da agência está em transição. “Dessa forma, a decisão não depende da realização de reunião presencial da diretoria colegiada”, diz o texto.

‘FÁBRICA PRONTA’

Os tempos de avaliação estão no centro da corrida para que o Butantan mantenha seu cronograma de produção. O acordo do instituto com a Sinovac prevê o recebimento de seis milhões de doses da CoronaVac ainda neste mês. Outras 40 milhões de doses serão fabricadas até dezembro no Brasil pelo Butantan, a partir dos insumos que devem ser recebidos da China por um acordo de transferência de tecnologia assinado com o laboratório chinês.

Segundo Dimas Covas, a fábrica do Butantan estaria pronta para começar a produção, dependendo apenas da liberação da matéria-prima.

Já a aplicação da vacina em si é outra etapa ainda mais distante. A Anvisa reforça que, mesmo que o pedido de importação seja autorizado, a vacina não pode ser aplicada na população, “tendo em vista que a CoronaVac não possui registro sanitário no Brasil”.

O Butantan diz reconhecer que a aplicação não acontecerá sem aprovação e registro da agência, que serão requeridos ao fim dos estudos clínicos de segurança e eficácia do imunizante. Isso depende do andamento e resultado das pesquisas levadas a cabo com 13 mil voluntários, profissionais de saúde, no Brasil.

O atraso na importação de insumos, porém, ganha ainda mais peso para o avanço da vacina no momento em que a compra da CoronaVac pelo governo federal não está garantida. Bolsonaro voltou a atacar ontem o imunizante produzido pela chinesa Sinovac, e afirmou que ela não será adquirida pelo Ministério da Saúde, mesmo se for autorizada pela Anvisa.

—A da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população (...) . Esse é o pensamento nosso. Tenho certeza que outras vacinas que estão em estudo poderão ser comprovadas cientificamente, não sei quando, pode durar anos — disse à Jovem Pan. —A China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido por lá.

A postura do presidente tem se sobreposto à do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que há dois dias anunciava em reunião com governadores que a pasta compraria a vacina CoronaVac. Em recuperação de infecção pela Covid-19, o general evitou confrontos com Bolsonaro.

 ‘MANDA E OBEDECE’

Pazuello dormia ontem após o almoço no hotel onde mora em Brasília, quando foi acordado por uma visita do presidente para uma live.

— Falaram até que a gente estava brigado. No meio militar, é comum acontecer isso aqui, não teve problema nenhum —disse Bolsonaro.

Na transmissão, Pazuello afirmou que se mantém no cargo e minimizou o mal-estar após ser desautorizado publicamente sobre o acordo pelo presidente.

— É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho, dá para desenrolar —disse Pazuello na live.

No mesmo dia, desviando da politização do tema, o vicepresidente, Hamilton Mourão, mandou um recado aos governadores que, na véspera, haviam criticado o recuo sobre a comprada Corona Vac. Mourão disseque os estados poderão adquirir o produto por conta própria, desde que haja certificação pela Anvisa.

—Todo mundo pode comprar. O estado pode comprar, os estados né, eles têm recurso também. Desde que a Anvisa certifique. A Anvisa só vai certificar aquilo que está comprovadamente testado —declarou.

Negociações alternativas e a vacinação de pessoas de outros estados não estão descartadas pelo governo de São Paulo. Ontem, o governador João Doria chamou Bolsonaro de “notório negacionista” e afirmou que é possível que pessoas de outros estados que estejam em São Paulo ou viajem para lá tenham acesso à vacinação.

— Seria legítimo e correto, além de humanitário, que atendêssemos na vacinação pessoas de outros estados que estivessem aqui ou para cá se dirigissem — disse Doria, em entrevista à CBN.