O Estado de São Paulo, n.46317, 09/08/2020. Economia, p.B2

 

Uma população dizimada

Celso Ming

09/08/2020

 

 

Neste final de semana, estão sendo contabilizadas no Brasil 100 mil mortes e quase 3 milhões de infectados pelo novo coronavírus, cerca de 1,5% dos brasileiros.

Sem exigir aqui exatidão matemática, são números que lembram a dizimação, o pior castigo admitido no exército romano, executado em caso de covardia, motim e alta traição. Consistia em condenar à morte um décimo dos soldados de uma coorte ou de uma legião. Era uma pena tão severa que foi aplicada poucas vezes. A última aconteceu no tempo do imperador Otávio Augusto, no ano 17 a.C.

Como a ação da pandemia no Brasil ainda vai longe, apenas lá por setembro ou outubro será possível avaliação melhor da extensão dos estragos. À parte a imprecisão das estatísticas, por conta da precariedade dos diagnósticos e das contagens, há elementos para afirmar que boa parte dessas pessoas foi vitimada pela desarticulação, pela falta de rumo do governo e pela incapacidade administrativa de certos administradores públicos. São fatores que vêm estendendo a duração da pandemia e aumentaram seus custos.

O balanço trágico não se limita ao número de infectados e de mortes. A atual geração praticamente perdeu um ano escolar e a evasão deve aumentar. A economia ficou ainda mais próxima da dizimação. O PIB do ano cairá pelo menos 5%, o desemprego alcança 13,3% da força de trabalho, as contas públicas se deterioram, a dívida bruta alcançou 85,5% do PIB, a perda de renda da população derrubou o consumo de mercadorias e serviços. A melhor indicação macroeconômica disso é a queda das importações, de 10,5% nos primeiros sete meses do ano. A retração da demanda obrigou o Banco Central a derrubar os juros básicos a 2,0% ao ano, já avançando para o campo negativo, se descontada a inflação esperada para o ano (1,63%).

Por todo o País, 552 mil pequenos e médios negócios ou quebraram ou estão para quebrar. O impacto sobre atrasos nos pagamentos e no recolhimento de impostos ainda é desconhecido, mas será enorme. A execução de projetos de investimento tanto do setor público como do setor privado foi adiada.

De todo modo, as desgraças apontam para mudanças importantes na sociedade ou para intensificação do seu ritmo. A resistência à aprovação de reformas já diminuiu e tende a diminuir ainda mais. O agronegócio sairá fortalecido. O processo de digitalização não será apressado apenas porque é preciso modernizar a comunicação, mas porque as conexões se tornaram instrumento de sobrevivência econômica e social. Em consequência disso, as cidades tenderão a se desconcentrar e, com essa desconcentração, mudarão as formas de mobilidade urbana. O carro elétrico e os veículos autônomos tomarão o espaço da frota alimentada por derivados de petróleo e dirigida por mãos humanas. Aumentará a cobrança pela despoluição do ar, da terra e da água.

Falta saber qual será o impacto da pandemia sobre as relações de poder e sobre os novos arranjos políticos que serão exigidos para a reconstrução da economia e da sociedade. A mortandade atingiu com força a população mais pobre, mas as classes médias saíram com avarias econômicas maiores porque, além de renda e de emprego, viram ser fechadas as portas do futuro profissional. As eleições municipais remarcadas para novembro poderão dar uma melhor ideia disso. E até lá se saberá se haverá vacina para todos.

(...)

Gordura de lucros

Como mostra a tabela, cresce o volume de provisões feitas pelos bancos para dar cobertura a calotes. As condições financeiras de grande número de devedores se deterioraram. Os administradores dos bancos alegam ser necessário aumentar o nível de gordura para enfrentar os sinistros da pandemia. No entanto, o nível da inadimplência até caiu em junho ante maio. Até que ponto os bancos não estão escondendo ou estocando lucros para que não sejam tão cobrados pelo tamanho do spread?