O Estado de São Paulo, n.46314, 06/08/2020. Metrópole, p.A18

 

SP chega ás 10 mil mortes por covid e responde por 1 em cada 10 óbitos no País

Ludimila Honorato

06/08/2020

 

 

Com os 10.055 registros confirmados até ontem, se a cidade de São Paulo fosse um país estaria em 13º em óbitos, conforme dados oficiais levantados pelo site Worldometers. Superaria, por exemplo, o total de mortos em Chile, Argentina, Alemanha e Africa do Sul

A cidade de São Paulo ultrapassou oficialmente a marca das 10 mil mortes por covid-19 nesta quarta-feira, conforme dados da Secretaria Municipal da Saúde. A capital responde por mais de um em cada dez óbitos no País e representa 41,7% do total de fatalidades no Estado, que lidera em casos e óbitos. O Brasil é o segundo no mundo em relatos, mas se só a capital paulista fosse um país estaria em 13.º em óbitos, conforme dados oficiais levantados pelo site Worldometers. Superaria, por exemplo, o total de mortos em Chile, Argentina, Alemanha e África do Sul.

São 10.055 vítimas em menos de cinco meses. Conforme um levantamento feito pelo Estadão no Tabnet, banco de dados oficial da Secretaria Municipal da Saúde – a primeira morte pelo novo coronavírus na capital paulista ocorreu em 12 de março. A Prefeitura utiliza atualmente o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e o Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade no Município de São Paulo (PRO-AIM), que processa declarações de óbitos, para lançar as informações na base de dados da doença. Assim, os números ficam mais precisos.

Nos gráficos, é possível ver a evolução das mortes por covid-19 na capital paulista com base na data exata de ocorrência do óbito. Em 26 de março, dois dias após o início do isolamento, com o funcionamento apenas de serviços essenciais, o Município de São

Paulo já registrava 185 óbitos. Foram necessários quatro dias para esse número dobrar. No começo de abril, a cidade ultrapassou os mil mortos, chegando a 1.040. No dia em que mais de 3,1 mil pessoas já haviam morrido pela doença, em 7 de maio, passou a valer a obrigatoriedade do uso de máscara. Até o último dia daquele mês, já eram 5.525 vidas perdidas. São Paulo passou das 9 mil no décimo quinto dia de julho. A cidade completa 10 mil mortos por covid-19 141 dias após o anúncio da primeira vítima. Nas últimas semanas, tem se observado uma estabilização de casos, óbitos e redução de internação. Mas para as famílias dos mortos – de todas as idades, gêneros, raças e áreas da cidade – o luto se mantém. O Estadão conta hoje mais dez histórias de algumas dessas vítimas.

HISTÓRIAS

George Francisco Gomes, de 50 anos 

'Não consigo imaginar o Dia dos Pais sem ele''

Ele era o papai de todos, tinha solução para tudo. Não importava onde estivesse, logo chegaria para te socorrer. Essa foi a lembrança que ficou para a filha Nathalia, do promotor de eventos e motorista particular George Francisco Gomes.

Ele era do grupo de risco. Diabético, hipertenso, negro. Ficou mal no dia de seus 50 anos, 28 de maio. Levado a uma UBS em Campo Limpo, já entrou de cadeira de rodas. Cinco dias depois, George foi entubado e um rim parou. No dia 12, Nathalia foi chamada ao hospital. Ele havia morrido horas antes. "Meu pai me ensinou muitas coisas. Nem consigo imaginar o Dia dos Pais sem ele".

Josefa Florentino Tavares, de 76 anos

'Além da perda, parece que a pessoa é indigente'

Silvia conta que foi como se um furacão tivesse passado. Desde o dia 25 de junho, quando o sogro teve um AVC e ficou internado, 11 pessoas da família contraíram a doença, incluindo ela, o filho, o marido e a sogra Josefa Florentino Tavares, de 76 anos, que morreu. Já em idade avançada, com diabete e hipertensão, a idosa visitou o marido uma vez porque tinha medo de pegar a doença. Mas ela não estava aguentando. Era dor de barriga, vômito e falta de ar. Ficou internada. Seu teste deu positivo. Ela não resistiu. "Colocaram Josefa dentro de um saco antes do caixão. Além da perda, parece que a pessoa é indigente", diz Silva.

Adipe Miguel Júnior, de 69 anos

'Ele sempre foi paizão, não o cara que ajuda a mãe'

O novo coronavírus entrou em um corpo já debilitado por doença autoimune, que tinha comprometido os movimentos, a parte neurológica e cerca de 70% do pulmão. Entrou no corpo de um homem que, aos 69 anos, almejava viver mais 15 para poder ver o neto na faculdade.

Generoso, amigo, bondoso e cheio de defeitos inerentes ao ser humano. "Ele sempre foi paizão, não o cara que ajuda a mãe", afirma Adipe Neto. Dedicou parte da vida a construir trens e metrôs de São Paulo, editou publicações evangélicas e acolheu o filho que contou sobre sua homossexualidade. "São essas coisas que marcam a vida", diz.

Érika Regina dos Santos, de 39 anos

"Foi quem mais me amou, difícil pensar que não está aqui"

Formada em Artes Cênicas, o lugar de Erika Regina dos Santos era nos palcos, mesmo que o palco fosse o interior de um ônibus onde, um dia, resolveu encenar um improviso. "Expansiva, divertida, acima do normal", descreve o irmão. Érika teve o espetáculo da vida encerrado muito antes de realizar seus sonhos. Por necessidade, continuou pegando o ônibus no Grajaú e indo até Alphaville. "Tinha duas pessoas infectadas no trabalho dela. Não a deixaram fazer home office, porque seu computador não era bom", conta Gabriel, um dos seus seis irmãos. Ela conseguiu um atestado, "mas nesse tempo o vírus tomou conta".

Marcelo Ribeiro, de 45 anos

'É uma roleta. Você não sabe quem vai ficar grave ou não'

Aquela lógica de que filhos enterram pais e os números que apontam que o covid-19 é pior para idosos se inverteram na família Ribeiro. Marcelo, de 45 anos, e a mãe, de 83, tiveram covid19 em março. Ele pegou a doença e morreu, dia 3 de abril, num hospital do Jardim Iva. Foi tratado em casa mas piorou, sua pressão arterial estava muito alta, tinha dor no peito e falta de ar.

A mãe, que também pegou e ficou internada no Hospital de Campanha do Pacaembu, só soube da morte do filho após deixar a unidade. "A doença é uma roleta, você não sabe quem vai ficar grave e quem não vai", diz a irmã Márcia.

Manoel Odinir Rigobelli, de 81 anos

'É uma tristeza não vê-lo mais acordado'

Desde q ue parou de trabalhar, fazer compras no mercado ou na feira era a forma como Manoel Odinir Rigobelli, de 81 anos, sentia-se útil. Nesse tempo de vida, mais de 50 anos foram dentro da Mocidade Alegre, uma paixão que tinha, ao lado do Palmeiras. Expansivo e um tanto teimoso, era difícil convencer esse homem a usar máscara e a lavar as mãos.

Foram 38 dias de hospital, entre emergência e UTI, depois que Manoel começou a reclamar de falta de ar. Ele resistia a ir ao médico, tinha medo de não voltar. Foi levado pelo filho Marcos. "É uma das principais tristezas que tenho, não vê-lo mais acordado."

Aparecido Alves Gouveia, de 74 anos

'Nunca imaginei que a covid pudesse chegar em casa'

Desde o início da pandemia, a família do aposentado Aparecido Alves Gouveia, de 74 anos, mudou hábitos para reduzir o risco de contágio. Além de idoso, ele tinha diabete, pressão alta, cardiopatia e asma. "Meu pai não colocava o nariz para fora de casa", conta a filha Marina, de 39 anos. Mesmo com todos os esforços, ele foi infectado. Ficou gripado, a família esperou alguns dias para levá-lo ao hospital. "Nunca imaginei que a covid fosse chegar dentro da minha casa", diz a filha. Gouveia foi internado no início de junho no hospital de campanha do Anhembi. "Fizeram tudo o que dava, mas não foi possível segurar."

Zita Pereira Silva, de 65 anos

'Você não aceita sua mãe morrer sem ver o rosto dela'

Zita Pereira Silva não era de desanimar. Pernambucana de Goiana, cidade perto do Recife, ela veio para São Paulo há duas décadas – e até o último mês de abril, já com 65 anos, ainda trabalhava como auxiliar de limpeza para pagar as contas. Vivia com o marido em uma favela da zona leste. Adoecida em abril, ela passou pelo Hospital de Campanha do Pacaembu, depois pelo Bela Vista.

"Sei que fizeram tudo que era possível, mas é muito difícil de aceitar. O enterro foi de dez minutos. Enquanto eu estava no cemitério, chegava carro funerário, eles abriam e vinham quatro corpos de uma vez", recorda a filha.

Maria dos Santos, de 59 anos

'Incrível como algo vem do nada e devasta famílias'

Ela adorava viajar. Se não estava trabalhando, estava conhecendo um novo lugar. Ou então em casa fazendo um churrasquinho. Aos 59 anos, dedicada aos dois filhos, um deles com esquizofrenia, à nora e à neta, Maria era exemplo de matriarca. A última viagem que planejaram seria para Santo Antônio do Pinhal.

Em março, com gripe e falta de ar, foi para o hospital do Mandaqui e depois ao HC. No dia 10 de abril, um rapaz do necrotério ligou, impaciente, e mandou irem reivindicar o corpo, que estava lá há 30 horas. O enterro ocorreu cinco dias depois, de forma rápida e desajeitada, segundo relata o filho Fagner.

Ronaldo Belotti, de 61 anos

'A gente foi tão feliz que não ficou pesado'

Magrão no basquete ou Seu Maloka na música, Ronaldo Belotti acreditava no poder da transformação social por meio dessas duas artes. O som da bola no chão fazia ritmo com as batidas no surdo, que ele tocava com sorriso largo. Apostou em projetos comunitários com crianças e estava todo sábado cantando chorinho na Praça Benedito Calixto.

Em 6 de abril, o novo coronavírus mudou sua rotina. Foi para o Incor e depois o HC. Na UTI, ficou 10 dias. "A maior parte do tempo, ele sofreu em casa, eu cuidei dele. Ele adorava musica", diz a mulher, Guta. "A gente foi tão feliz que não ficou pesado", acrescenta.