Correio braziliense, n. 20970, 22/10/2020. Mundo, p. 12

 

Papa apoia união civil gay

Rodrigo Craveiro 

22/10/2020

 

 

Foi a declaração mais incisiva e clara do papa Francisco sobre um tabu malvisto pela ala ultraconservadora da Igreja Católica. No documentário biográfico Francesco, do cineasta americano-russo Evgeny Afineevsky, apresentado ontem no Festival de Cinema de Roma, o pontífice argentino afirmou que as pessoas homossexuais devem ser protegidas por leis civis para casais do mesmo sexo. "As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família, são filhos de Deus, possuem direito a uma família", afirmou Francisco. "Não se pode expulsar ninguém de uma família, nem tornar sua vida impossível por isso. O que temos que fazer é uma lei de convivência civil, eles têm direito a estarem legalmente protegidos. Eu defendi isso", acrescentou, ao se tornar o primeiro papa da história a avalizar as uniões civis entre pessoas LGBTQIA+.

Com duas horas de duração, o documentário de Afineevsky revisita os sete anos de pontificado e as viagens de Francisco. A obra ganhou o Prêmio Kineo da Humanidade, que celebra a promoção de questões sociais e humanitárias. Ontem, o diretor — indicado a um Oscar e a um Emmy, em 2016, por Winter of Fire — foi recebido pelo papa, no Vaticano, onde celebrou o 48º aniversário e ganhou um bolo do líder católico jesuíta. Em um dos momentos mais intensos do filme, o pontífice telefona para um casal gay, com três filhos pequenos, em resposta a uma carta enviada por eles, na qual descrevem a vergonha sentida por levarem as crianças à paróquia. Francisco responde, convidando-os a seguirem frequentado a Igreja, sem se importarem com os julgamentos alheios.

Emoção

O jornalista chileno Juan Carlos Cruz Chellew (leia Duas perguntas para), vítima de abusos cometidos pelo padre Fernando Karadima, na década de 1980, participa do documentário Francesco e contou ao Correio que se emocionou com o gesto do pontífice. "Temos conversado por dois anos. Eu o quero muito e o respeito bastante. O papa Francisco é um homem que não discrimina a ninguém, e isso me alegra muito. Quando fala sobre uniões civis, fala de proteção a pessoas que não devem ser discriminadas", explicou Cruz. "Ele não está mudando a doutrina da Igreja, o catecismo, nem nada. O que ele defende é a proteção das pessoas, neste caso, da comunidade LGBTQIA . Isso me parece muito bem e eu o apoio", acrescentou o também ativista homossexual.

O teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Jr. — chefe do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) — classificou de "importante" e "corajosa" a declaração de Francisco. "Ela está em plena consonância com o seu pensamento profundamente realista e em conexão com a Amoris laetitia, a exortação apostólica em que trata da moral sexual e familiar. De modo particular, mostra-se em consonância com os direitos civis, que precisam ser garantidos sob quaisquer circunstâncias. O pontificado de Jorge Mario Bergoglio, nesse sentido, leva em conta os grandes valores humanistas", afirmou.

O especialista reconhece que a posição de Francisco é explicitamente humanitária e polêmica. Altemeyer prevê uma reação frontal da ala conservadora da Igreja Católica, especialmente dos episcopados mais tradicionais e integristas, como o polonês e o espanhol. "Os cardeais têm mais bom senso, salvo aqueles da ultradireita, principalmente os norte-americanos. Em geral, a posição é de acolhida", acredita. "Eu resumiria tudo em: acolher cada pessoa como ela é, sem idealismos, sem recalques, sem opressão e sem julgamentos, a priori. Francisco pede a cada católico que acolha a outra pessoa na sua diversidade, na sua identidade, no seu valor como pessoa humana e como criatura de Deus. É uma chave que pode incomodar pessoas enquadradas, fundamentalistas e integristas", concluiu.

A declaração de Francisco no documentário indica uma mudança de postura em relação à temática LGBTQIA . Em maio de 2013, no livro On Heaven and Earth ("Sobre o céu e a Terra"), dois meses depois de ser eleito papa, Francisco afirmou que igualar, legalmente, as relações entre pessoas do mesmo sexo aos casamentos heterossexuais seriam "regressão antropológica". Ele também afirmou que, se casais gays obtivessem permissão para adoções, "isso poderia afetar as crianças". Em 29 de julho de 2013, durante voo de retorno do Brasil, onde participou da Jornada Mundial da Juventude, Francisco foi questionado por um repórter sobre a ordenação de padres gays. A resposta repercutiu na imprensa mundial: "Se alguém é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-lo?".

» Eu acho....

“A abertura de Francisco é sempre estratégica e ponderada. Ele é um bom jesuíta. Usa sempre de uma palavra que Ignácio de Loyola, o fundador dos jesuítas, colocou como critério de discernimento. Para Francisco, a oposição não leva a lugar nenhum. Não é um papa dialético, nem de confrontações. Ele sempre sugere a imagem do poliedro: várias perspectivas, que, conversando, chegam a um estágio superior. Creio que ele continuará, sim, a assumir as pessoas como elas são. Deus ama a cada qual como é, hetero, homossexual ou transexual. Isso, para Francisco e para a mora sexual da Igreja atual, em termos gerais, é um avanço.”

Fernando Altemeyer Jr., filósofo, teólogo e chefe do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Ministério pró-LGBTQIA+ celebra declaração

22/10/2020

 

 

Desde 1977, quando foi fundado pela freira Jeannine Gramick e pelo padre Robert Nugent, em Mount Rainier (Maryland), o New Ways Ministry ("Ministério Novos Caminhos") acolhe católicos da comunidade LGBTQIA+ e lhes oferece justiça e reconciliação. A entidade recebe apoio de bispos, padres, freiras e teólogos. Em entrevista ao Correio, Francis DeBernardo, diretor-executivo do New Ways Ministry, disse ter ficado "muito feliz" e "surpreso" com o apoio do papa à união civil entre homossexuais. "Embora ele tenha afirmado várias coisas positivas sobre as pessoas LGBTQIA no passado, a questão dos relacionamentos sempre foi controversa. O papa teve coragem de fazer uma declaração positiva sobre o tema. Foi uma atitude muito corajosa por parte dele", afirmou.

DeBernardo explica que todos os pontífices ditam o tom de debates não apenas dentro da Igreja Católica, mas na própria sociedade. "A mensagem positiva de Francisco ajudará as pessoas LGBTQIA a obterem o respeito e a conseguirem seus direitos. Muitas pessoas olham para o papa como se ele fosse um modelo. Se elas imitarem o seu exemplo de apoio aos casais gays e lésbicos, o mundo será um lugar muito melhor", comentou.

De acordo com o diretor-executivo do New Ways Ministry, vários cardeais e bispos têm criticado o líder católico, especialmente em relação a temas ligados às pessoas LGBTQIA . "No entanto, creio que eles representem uma minoria dentro da Igreja. Pelo menos 15 países tradicionalmente católicos têm uniões civis ou casamentos para lésbicas e gays. Isso mostra que os católicos apoiam essas relações", afirmou DeBernardo. Entre as nações citadas por ele, estão: Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Portugal e Espanha.

Em comunicado oficial, o New Ways Ministry também apontou que a declaração do papa terá efeito que irá além dos debates legais e das discussões eclesiásticas. "Não é exagero dizer que, com esta declaração, não somente o papa proteger casais LGBTQIA e suas famílias, como também salvará muitas vidas."