Valor econômico, v. 21, n. 5133, 23/11/2020. Brasil, p. A2

 

Falta de planejamento é risco para logística de vacinação contra covid

Gabriel Vasconcelos

23/11/2020

 

 

Preocupação vai desde materiais de fácil fabricação, como seringas e agulhas, até capacidade armazenamento de produtos que exigem resfriamento

Com os avanços da corrida por uma vacina contra a covid-19 no Brasil, especialistas em saúde agora se preocupam com a infraestrutura necessária para uma campanha de imunização de porte nunca visto no país. Isso passa pelo provimento de materiais de fácil fabricação, como seringas e agulhas, e aspectos mais complexos, como armazenamento de produtos que exigem resfriamento agudo.

O professor de ciências farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) Marco Antônio Stephano afirma que os governos federal e subnacionais ainda estão muito centrados no debate sobre o desenvolvimento da vacina e não têm se preparado para recebê-la com materiais simples, o que pode ser um gargalo na hora de vacinar a população. “O Brasil já realiza campanhas de vacinação grandes, com cerca de 300 milhões de doses todos os anos, e que não vão parar. Terão de acontecer em paralelo à do coronavírus. Se não houver planejamento, pode faltar o básico: seringa e agulha”, diz Stephano.

A necessidade inédita de vacinar toda a população e a provável exigência de duas doses por pessoa para se atingir a imunização, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), vão pressionar a logística de vacinação contra a covid-19, alertam os especialistas ouvidos pelo Valor.

Fontes familiarizadas com a preparação do Plano Nacional de Imunização (PNI), pelo Ministério da Saúde, dizem que o governo federal planeja oferecer 300 milhões de doses gratuitas até o fim de 2021, a maior parte com a vacina criada pela Universidade de Oxford junto à farmacêutica AstraZeneca, além de outras opções em desenvolvimento na coalizão Covax Facility, liderada pela OMS. A esses lotes, se somariam as vacinas estaduais, como a de São Paulo, onde o Instituto Butantan pretende envasar 40 milhões de doses da chinesa Coronavac ainda neste ano e adentrar 2021 entregando mais unidades, envasadas ou fabricadas no Estado.

Com o dobro de doses no PNI e outras iniciativas concorrentes, haveria sobrecarga no mercado de produtos médico-hospitalares, diz Stephano. O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alta Tecnologia de Produtos para Saúde (Abimed), Fernando Silveira, informa que os fabricantes ainda não receberam nenhuma encomenda ou sinalização por parte de governos ou do SUS, o que pode trazer dificuldades em caso de aumento repentino na demanda.

O mercado brasileiro de seringas e agulhas, diz Silveira, é dominado pelas fabricantes Becton Dickinson (BD), Saldanha Rodrigues (SR) e Injex. As três, diz ele, têm capacidade instalada para produzir 1,5 bilhão de kits ao ano, sendo 1,2 bilhão de unidades a demanda padrão, sem pandemia. “O setor opera com 80% da capacidade, sem muita margem para cobrir mais pedidos de uma hora para outra. Passa da hora de os entes federativos prepararem o setor, com sinalização formal sobre qual será a demanda e o prazo para a entrega dos produtos”, diz Silveira.

“Com duas doses por pessoa, para imunizar 90% da população, são quase 400 milhões de vacinas a mais”, calcula. Segundo o executivo, países como Estados Unidos e Canadá já aumentaram a compra de seringas. “Todos sabem que estamos em um ponto de virada, com vacinas na fase três de testes. Nenhum país quer dormir no ponto com coisa tão básica”, diz.

Ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão não teme déficit de material por estimar número menor de doses disponíveis em 2021. Ele diz que meta “razoável” seria imunizar 50 milhões de brasileiros com 100 milhões de doses, o que não sobrecarregaria o PNI. Mas Temporão acusa lentidão na preparação de um plano de vacinação, necessário à preparação dos vários níveis do SUS.

Presidente da Academia Nacional de Medicina, o médico Rubens Belfort concorda. Ele reclama de politização e falta de transparência. “Ninguém sabe ao certo quais vacinas chegarão prontas ou em frascos multidoses. As empresas estão interessadas em fazer os preços das ações subirem em vez de projetos transparentes. Há uma briga comercial e política que suplanta a questão sanitária”, afirma.

Caso os primeiros lotes importados cheguem em kits prontos para uso, com doses já nas seringas, diz Belfort, a demanda por materiais hospitalares seria atenuada por “alguns poucos meses”. É o caso, por exemplo, das primeiras 6 milhões de doses que o governo de São Paulo comprou da China.

O sanitarista e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Gonzalo Vecina diz que, se o país não conseguir produzir vacinas por meio de transferência tecnológica já no início de 2021, terá de envasar novas quantidades importadas, o que manteria a pressão sobre fabricantes de seringas.

Outro atenuante logístico, diz Vecina, é o escalonamento dos grupos a serem vacinados, mas nem isso estaria definido, porque o conselho ao qual caberia tal planejamento foi descontinuado por decreto da presidência ainda no início de 2019. Vecina alerta para outras dificuldades além das seringas, como dificuldades para o armazenamento de vacinas que requerem temperaturas muito negativas. “A escolha por esses produtos seria desastrosa do ponto de vista logístico. Fala-se em gelo seco, mas, com certeza teremos problemas para encontrar quem produza tanto disso.”

O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que integra o consórcio da vacina de Oxford, informou que o provimento de material necessário à vacinação é responsabilidade do governo federal em articulação com Estados e municípios e que entregará a vacina em frascos com cinco doses cada um a serem armazenados em temperaturas de 2ºC a 8ºC, adequada à rede de frio existente no país. A Fiocruz planeja entregar 100,4 milhões de doses no primeiro semestre de 2021 e outras 110 milhões de unidades no resto do ano.

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Faltam ferramentas contra a segunda onda

23/11/2020

 

 

Munição fiscal e monetária foi gasta no início da pandemia

Cresce o número de analistas econômicos que acreditam que é uma questão de tempo para a segunda onda da covid se impor no Brasil. Deverá ocorrer impactos na atividade econômica, como já ocorre na Europa, com a perspectiva de um quarto trimestre bem mais fraco do que o terceiro. As ferramentas fiscais e monetárias para se contrapor a esse choque são limitadas.

O ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn disse, em live da Liga do Mercado Financeiro da Esalq/USP, que é muito provável a adoção pelos governos de novas medidas de distanciamento social. “Já está ocorrendo na Europa e, no Brasil, a conversa de ‘lockdown’ vai começar logo”, afirmou. “Só não está começando porque tivemos as eleições municipais.”

Ele, porém, cita duas diferenças em relação ao que ocorreu no começo do ano que podem, ao menos, atenuar um pouco os impactos econômicos. “Na primeira onda, estávamos diante do desconhecido.” Hoje, há maior familiaridade de governo, empresas e indivíduos com a pandemia. Em março, não se sabia a profundidade, a duração e a mortalidade da covid. “Agora, por mais que o vírus tenha coisas desconhecidas, sabemos que é preciso usar máscara, ficar ao ar livre, que não vai faltar comida. Em março, muita gente correu ao supermercado e estocou papel higiênico.” Outra diferença importante é que a incerteza sobre a nova onda da pandemia ocorre em meio à esperança do surgimento de uma vacina, depois que foram vencidas as etapas de testes, e os laboratórios pedem autorização emergencial para produzi-las. Restam ainda desafios imensos para que, de fato, a imunização chegue à população, mas o tom mais positivo ajuda um pouco.

Ilan, porém, vê agora um espaço mais limitado de reação de governos e de bancos centrais para sustentar a economia do que na primeira onda. “Usamos uma parte da munição, a dívida pública já aumentou bastante.” No Brasil, o espaço fiscal parece que chegou ao limite. “Se tiver uma segunda onda, não sei de onde vai tirar o dinheiro.”

A frágil condição fiscal também impõe um limite para a ação de política monetária. Afinal, contas públicas sustentáveis são a base de qualquer política monetária crível, que de fato consiga controlar a inflação. Para Ilan, embora os juros por aqui ainda não tenham chegado a zero, como ocorreu em várias economias avançadas, “a gente chegou num limite relevante”.

O Banco Central vem debatendo nas reuniões do seu Comitê de Política Monetária (Copom) o chamado limite efetivo para a baixa de juros. Receia-se que, se os juros baixarem além dos atuais 2% ao ano, os riscos à estabilidade financeira se ampliem - desencadeando, por exemplo, ondas de saques de fundos de renda fixa ou uma corrida para o dólar. O BC diz que está observando os mercados e que não tem uma opinião pré-definida sobre o piso para os juros. Nessa discussão prudencial, em tese há uma porta aberta para novas baixas, num ritmo mais gradual.

Ilan, na live, também indicou que não há nada escrito na pedra que indique um limite de 2% para os juros, ou de um outro percentual, como 1,9%. É uma questão de riscos. Quanto mais baixa a taxa de juros, caminhando em direção a zero, mais exposto o BC fica no seu chamado balanço de riscos para a inflação e, portanto, maiores as chances do lado da estabilidade da moeda.

O Banco Central também tem à sua disposição instrumentos não convencionais de política monetária, como o “forward guidance” e programas de expansão quantitativa, como fazem economias avançadas. Por aqui, o BC adotou o seu “forward guidance”, prometendo não subir os juros em condições em que normalmente subiria. “O Banco Central está fazendo um bom trabalho”, disse Ilan. Mas ele pondera que os resultados têm sido relativamente limitados, pois o risco fiscal vem se impondo na curva de juros futuros. O próprio Banco Central, na sua comunicação oficial, reconheceu que o efeito do “forward guidance” é limitado em países emergentes, mas concluiu que valeria a pena fazer uma tentativa.

Essa discussão sobre novas medidas fiscais e monetárias para se contrapor a uma eventual segunda onda da pandemia, naturalmente, é apenas teórica. Será preciso ver como esse choque se manifesta, qual é o seu alcance e, principalmente, a sua repercussão na inflação, cujo controle é o principal mandato do Banco Central.

Nas últimas semanas, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tem chamado a atenção para o fato de que, nessa nova onda na Europa, as medidas de distanciamento social têm sido menos eficazes. Governos adotaram medidas de distanciamento social semelhantes à primeira onda, mas o seu efeitos em indicadores de mobilidade têm sido bem mais acanhados.

O outro lado é que o distanciamento social é, em alguma medida, voluntário. Uma parcela da população tenderia a ficar em casa, consumindo menos bens e serviços, diante de um recrudescimento da pandemia. O ambiente de maior incerteza sobre a manutenção da renda no futuro também poderia levar a um aumento da poupança precaucional.

Em live do Valor na semana passada, o diretor de Política Monetária do BC, Bruno Serra Fernandes, disse que os efeitos da segunda onda na Europa têm sido, em alguns aspectos, mais moderados. Os preços dos ativos não caíram como na primeira onda, não ocorreu a mesma aversão a risco e os mercados não travaram. Mais importante: Serra disse ter dúvidas se, para o Brasil, essa eventual segunda onda teria efeitos desinflacionários, como ocorreu na primeira. O desdobramento disso é que, se a inflação não cai, não haveria necessidade de mais estímulo.

Mas não é possível dizer, a partir do pronunciamento de Serra, que existe um diagnóstico fechado sobre o tema. O que se sabe, pela sinalização feita pelo BC, é que os estímulos monetários serão aumentados caso o cumprimento da meta de inflação fique em risco. Pode haver algum espaço para novos cortes de juros. E, por enquanto, o Banco Central adotou uma forma suave de “forward guidance”, que pode ser ainda mais aprofundado.