O globo, n. 31849, 18/10/2020. Sociedade, p. 23

 

Mortalidade por Covid cai à metade do auge, mas abertura preocupa

Rafael Garcia

18/10/2020

 

 

Otimismo com desaceleração da epidemia no Brasil esbarra em medo de segunda onda e desconfiança com testes

 Será o começo do fim? Na semana que passou, o Brasil registrou cerca de 500 mortes diárias por Covid-19, metade do platô que perdurou no auge da pandemia, entre junho e agosto. Apesar de a queda ter sido lenta, várias cidades já avançaram com planos de reabertura. A retomada não provocou uma explosão de casos nem um aumento nos óbitos, mas especialistas ainda olham o cenário com cautela.

Das dez cidades que mais tiveram mortes por coronavírus, por exemplo, oito já começaram a reabrir escolas, ainda que com limitações. Restaurantes e áreas de lazer também retornaram em vários municípios, mas as condições da reabertura variam.

Sérgio Cimerman, diretor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), afirma que a precaução parece estar ajudando em locais como São Paulo:

— A gente tem visto restaurantes com distanciamento entre as mesas. Bares estão abertos, mas não estão cheios de pessoas em pé. É um cenário, de modo geral, diferente do que se viu em centros boêmios do Rio, como a Rua Dias Ferreira, no Leblon, com calçadas apinhadas. Se há diversidade de comportamentos entre cidades (e bairros), diz Cimerman, o reflexo das açõe ficará claro mais adiante.

A SEGUNDA ONDA VAI BATER?

Para além de especulações, o Brasil tem motivos concretos para apreensão, assistindo de longe uma segunda onda da Covid-19 na Europa. Alguns países europeus, ressalta Cimerman, não tiveram uma reabertura particularmente cuidadosa: em Paris, nas áreas que reúnem mais bares, muitos deles ficaram lotados, com clientes sem máscara. O problema da conscientização independe de classe, lembra o infectologista.

Como a situação varia muito também no Brasil, o mais importante para os especialistas é que cada município tenha condições de olhar suas realidades específicas e tomar as decisões corretas. Segundo Cimerman, é fundamental que as cidades construam estruturas para rastreio de contatos de infectados com o objetivo de identificar possíveis retrocessos na atual tendência de melhora.

— É preciso ser humilde para poder retroceder — afirma o médico, que diz estar preocupado com o impacto das eleições municipais nas políticas públicas, pois o período de campanha eleitoral desfavorece a adoção de medidas potencialmente amargas.

O recado pode se dirigir a municípios como Rio, Belo Horizonte e Salvador, onde a tendência de queda no número de mortes por Covid-19 se reverteu em certa medida após o fim de agosto. Em São Paulo, a redução se mostra mais linear, porém lenta.

Em algumas capitais, como Goiânia, no entanto, a curva de morte da epidemia ainda é ascendente. E em Porto Alegre, especialistas apontam, a tendência de queda com menos de um mês pode gerar confiança prematura. Segundo a SBI, diante do cenário incerto, o foco da abertura deve ser centrado nas atividades essenciais.

— É um absurdo um país que reabre shopping, restaurante, bar e cinema, mas não reabre escola — afirma Cimerman, para quem a educação em público é crucial neste momento. —E quando você for a um lugar público, respeite as pessoas. Use a máscara e mantenha o distanciamento. Não confunda liberdade com libertinagem.

DADOS NO ESCURO

As incertezas que assombram a retomada da economia, porém, não se restringem ao comportamento da população. Os dados sobre disponibilidade de testes diagnósticos no país ainda não inspiram confiança.

Na opinião de Wesley Cota, cientista de modelagem epidemiológica na Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, a deficiência da testagem no Brasil torna difícil comparar o país coma Europa.

— Os países da Europa tiveram fases bem distintas, mas aqui isso não ocorreu, Pode ser que a segunda onda já esteja acontecendo em alguns estados, mas não acredito, pois agente não sabe sequer se passou da primeira onda —diz o pesquisador.

Uma característica da segunda onda europeia, além disso, éa de que onúm erode mortes não sofreu um rebote de crescimento tão alto quanto o de casos.

— Aumentaram muito o numero de testes e estão identificando muito mais casos —sublinha Cota.

Cientistas consideram que, nas cidades em que boa parte da população foi exposta ao vírus da Covid-19, o contágio em massa já esteja freando a velocidade local da pandemia. Em Manaus, por exemplo, já há evidências de que parte da população adquiriu imunidade. Se cidades com menor prevalência da doença estão se beneficiando desse fator, porém, ainda é difícil calcular.

— De qualquer forma, não podemos contar com a imunidade, atingida às custas de muitas mortes — diz Cota. — Toda a incerteza sobre o rumo atual da epidemia é razão para termos ainda mais cautela.