Valor econômico, v. 21, n. 5123, 09/11/2020. Brasil, p. A5

 

Mulheres concentram perda de empregos formais na pandemia

Anaïs Fernandes

09/11/2020

 

 

Há também maior dificuldade para elas voltarem ao mercado

Apesar de serem minoria no mercado de trabalho formal, as mulheres concentram quase dois terços (65,6%) da destruição líquida de vagas celetistas na pandemia, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia. Entre março e setembro, o saldo entre contratados e demitidos com carteira assinada foi negativo em 897,2 mil vagas, dos quais 588,5 mil eram de mulheres. Como nos dois primeiros meses do ano, quando ainda havia saldo positivo de vagas para ambos os sexos, a criação de postos para mulheres também foi menor, elas representam hoje 81% do resultado líquido negativo do Caged em 2020.

O que mais preocupa, segundo especialistas, não é só que as mulheres estão saindo mais do mercado de trabalho, mas também demonstram maior dificuldade de retornar. Em junho, quando o saldo geral do Caged ainda era negativo, o estoque de empregos formais ocupados por elas estava 4,7% abaixo do nível de fevereiro (pré-covid), enquanto para homens era 3,7% inferior.  

A partir de julho, o mercado como um todo começou a reagir e, em três meses, foram criadas 697,3 mil vagas, mas 77% foram para homens. A recuperação deles, na verdade, começou um mês antes das mulheres, já em junho. Com isso, o estoque de emprego feminino em setembro avançou apenas 1,1% em relação a junho, enquanto a recuperação masculina foi de 2,4%. Em 12 meses, a queda do estoque de empregos é de 3,7% para as mulheres e 1,3% para os homens.

“A destruição de vagas formais foi, proporcionalmente, maior para elas. Além disso, elas parecem ficar para trás na recuperação parcial iniciada”, diz Marcos Hecksher, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Dos cerca de 38 milhões de trabalhadores celetistas no Brasil, o estoque feminino costuma girar em 15 milhões. Hecksher observa que, de fevereiro a setembro, o percentual de mulheres no total de empregos formais diminuiu continuamente, de 40,85% para 40,27%. Desde 2018, a participação era estável.

As mulheres estão mais presentes em ocupações duramente afetadas pela crise e que fecharam muitas vagas, como em serviços. Mas Simone Wajnman, professora titular aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora de longa data do mercado de trabalho feminino, chama a atenção para como as mulheres foram mais demitidas inclusive em ocupações “tipicamente masculinas” (em que o percentual de homens é superior à sua representação no mercado total). É o caso, por exemplo, da indústria e de transportes e armazenagem.

 “As mulheres são agudamente afetadas porque ocupam predominantemente segmentos mais vulneráveis ao distanciamento social, como alojamento e alimentação, mas também porque atividades ‘tipicamente masculinas’ estão acabando com as poucas mulheres que estavam ali”, diz Simone. Além disso, ela afirma que a recontratação está privilegiando os homens. “Seja pela oferta, porque elas têm dificuldade de remanejar o esquema doméstico para voltar com força ao mercado, seja pelo lado da demanda, uma vez que negócios em que elas mais conseguem vagas vão precisar passar por reestruturações importantes.”

Especialistas ponderam que, por englobar apenas postos com carteira, o Caged não contabiliza ocupações com alto grau de informalidade e que também costumam ter mais mulheres, como serviços domésticos. Mas os dados do Caged são corroborados por pesquisas abrangentes do IBGE.

Hecksher, em parceria com Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa e Joana Simões Costa, já tinha usado a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua para acompanhar indivíduos antes da crise e no início dela, notando a fragilidade do mercado de trabalho feminino. Ao atualizar o estudo, os pesquisadores perceberam que, das mulheres ocupadas nos três primeiros meses deste ano, 15,5% não estavam empregadas no segundo trimestre, sendo que esse percentual girava em torno de 11,2% na média de 2017 a 2019. Entre os homens, a “saída” da condição de ocupado também aumentou, porém menos, para 11,7% no segundo trimestre de 2020, ante uma média de 8,6%.

“As mulheres foram as mais prejudicadas em termos de aumento das saídas, sobretudo as com crianças em casa. Já nas entradas, os homens perderam mais que as mulheres, mas as mulheres com crianças em casa também perderam mais do que as sem crianças”, diz Hecksher. O percentual de mulheres que convivem com crianças de até dez anos no lar e que não estavam empregadas no primeiro trimestre, mas conseguiram uma ocupação no trimestre seguinte, caiu para 4,5% neste ano, ante média de 13,5% entre 2017 e 2019.

Bruno Ottoni, pesquisador da iDados, destaca a diferença de cenários para homens e mulheres na população economicamente ativa (PEA). Pelos dados da Pnad Contínua, o contingente de mulheres na PEA passou de 47,2 milhões no primeiro trimestre deste ano para 42,6 milhões no segundo, uma queda de 9,7%, enquanto, para eles, o recuo foi de 7,5%. Em relação ao mesmo período de 2019, a perda se aproxima de 11% para as mulheres, contra 8,1% entre os homens.

Para Ottoni, elementos particulares da crise da covid, como o fechamento das escolas, sugeriam que o choque desigual para os sexos poderia ser ainda maior. “Isso pode aparecer com mais clareza nos dados do terceiro trimestre, quando houve uma retomada das atividades, mas as mulheres ainda ficaram meio ‘travadas’, porque as escolas não retornaram.”

A Pnad Covid, pesquisa semanal do IBGE, já indica isso. A taxa de desocupação entre as mulheres foi de 17% em setembro, contra 11,8% dos homens. “Na Pnad Covid, vemos as mulheres em maior percentual entre os trabalhadores temporariamente afastados e também os desalentados. Os dados mostram que a taxa de desemprego só não está mais alta para elas porque a queda na ocupação não se transferiu diretamente para desemprego”, diz Simone.

O auxílio emergencial, pago em dobro para mães chefes de família, teve “impacto importantíssimo” nesse sentido, afirma a pesquisadora. Mas a retirada gradual e, depois, total também deve gerar um “choque negativo em dobro”, alerta Hecksher, do Ipea. “Isso deve impulsionar ainda mais a volta a procurar emprego, e é bem possível que boa parte delas não encontre.”

A crise no trabalho feminino pode ganhar contornos também de um problema de médio e longo prazo. “Algumas famílias aprenderam a se virar sem o serviço doméstico e podem manter isso, para economizar ou por medo de contágio”, diz Simone. “Em alojamento e alimentação, muitos negócios não vão reabrir e, para os que voltarem, haverá muita competitividade.” A professora da UFMG se diz preocupada com o “efeito cicatriz”. “Quanto mais tempo afastada do mercado de trabalho, piores são as chances de retornar.”

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Brasil deve ter ‘ressaca’ da massa de renda em 2021

Ana Conceição

09/11/2020

 

 

Em 2021, está previsto o fim do auxílio emergencial, que teve impacto expressivo para sustentar o rendimento em 2020

Em 2021, terminados os pagamentos do auxílio emergencial e do BEm, programa de estímulo à manutenção do emprego, o país deve experimentar uma “ressaca” da massa de renda. Junto com outros fatores, como as incertezas quanto ao equilíbrio fiscal, isso tende a frear uma retomada mais forte da economia. Uma “hipótese em investigação” no governo aponta que os brasileiros expulsos do mercado de trabalho poderiam seguir em 2021 sem o auxílio emergencial, cujo fim não prejudicaria a retomada da economia, segundo apurou o Valor na semana passada. Com o relaxamento maior do isolamento, essas pessoas poderiam voltar ao mercado e encontrar uma ocupação. Essa hipótese leva em conta que a renda média efetiva do brasileiro estaria se aproximando da renda habitual, segundo o governo, que cita dados da Pnad Contínua.

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base nos microdados de outra pesquisa do IBGE, a Pnad Covid, mostra que, de fato, em agosto, a renda média efetiva foi equivalente a 89,4% da renda habitual, parcela 2,3 pontos percentuais maior que em julho. Os trabalhadores por conta própria receberam efetivamente apenas 76,7% do que habitualmente recebiam (contra 72% em julho) e os do setor privado sem carteira assinada receberam efetivamente 86,1% do habitual. Trabalhadores do setor privado com carteira e funcionários públicos, por sua vez, receberam efetivamente em média 95% do habitual.

Economistas, contudo, afirmam que a renda média não é o melhor indicador para avaliar a necessidade ou não de continuar com o auxílio e seu eventual impacto na atividade. Esse papel é da massa de rendimentos, aquela que deve ter uma ressaca em 2021. “A Pnad só pergunta a renda de quem está ocupado. E 10 milhões de pessoas perderam o emprego na pandemia, estão com zero renda e não entram nesse cálculo da diferença de renda efetiva e habitual”, observa Daniel Duque, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV). A volta do emprego, diz, não será rápida o suficiente para absorver toda a mão de obra que deve voltar ao mercado ao fim do auxílio e das medidas de isolamento.

Lucas Assis, economista da Tendências Consultoria, acrescenta que análises que levem em conta a renda média são problemáticas, em especial nos momentos de crise. “No caso da pandemia, a renda habitual e a efetiva têm crescido por causa de um caráter regressivo, ou seja, a queda das ocupações foi maior entre os informais, que têm salário menor, elevando o rendimento médio. É complicado fazer comparações por causa desse efeito composição.”

O dado que realmente retrata melhor a situação do mercado de trabalho, afirma Assis, é a massa de rendimentos. Mas para efeito de continuidade do auxílio emergencial deve ser levado em consideração que existe todo um contingente de pessoas que simplesmente não tem trabalho nem renda. “Com o fim do auxílio, vai haver um efeito ressaca da renda, ou seja, uma forte queda da massa de renda total. Isso especialmente nas regiões e parcelas da população mais pobres.”

Segundo estimativa da Tendências, depois de crescer 4,5% em 2020, a massa de renda ampliada deve cair 4,3% em 2021. No Norte e no Nordeste, a queda vai ser muito maior, de 10,8% e 12,3%, respectivamente. Nessas regiões, o desemprego é maior e há mais dependência do auxílio. A massa de renda ampliada considera trabalho, Previdência, Bolsa Família, aluguéis, seguro-desemprego e outras fontes.

Assim, as pessoas que pararem de receber o auxílio devem voltar ao mercado de trabalho, o que deve elevar a taxa de desemprego em 2021, a despeito do aumento estimado de 5,5% na população ocupada, após queda de 7,2% neste ano. Em outras palavras, a recuperação da economia - a Tendências estima alta de 2,9% do PIB no próximo ano - vai criar empregos, mas não em número suficiente para ocupar todos as pessoas que voltarem ao mercado.

“Em 2020, considerando a redução no valor do auxílio emergencial e os efeitos negativos da pandemia no mercado de trabalho, a massa total não deve sustentar, até o fim deste ano, o mesmo patamar dos meses anteriores. Já em 2021, a massa deve cair com o fim dos repasses emergenciais, pois, a despeito da expectativa de reestruturação do Bolsa Família em um novo programa social, a gradual retomada das ocupações entre a população economicamente mais vulnerável do país não será suficiente para garantir a manutenção dos rendimentos do ano anterior.”