O globo, n. 31834, 03/10/2020. Economia, p. 21

 

Em lados opostos

Manoel Ventura

Geralda Doca

Marcello Corrêa

Eduardo Campos

03/10/2020

 

 

Falta de verba para programa Renda Cidadã acirra tensão entre alas política e econômica
A falta de verba para financiar o Renda Cidadã acirrou a tensão entre as alas política e econômica do governo. Depois de uma semana marcada por divergências dentro do Planalto e com o Congresso em torno das fontes de recursos para o novo programa social, ontem os desentendimentos envolveram dois ministros que já vinham se antagonizando há meses: Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Paulo Guedes, da Economia. Em uma reunião fechada com analistas do mercado financeiro, Marinho teria feito críticas a Guedes e afirmado que o Renda Cidadã sairia por bem ou por mal. A declaração mexeu com o mercado, pois foi interpretada como um sinal de estouro do teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas à inflação do ano anterior. Marinho também teria dito que a ideia — criticada dentro e fora do governo —de financiar o programa com precatórios (dívidas do governo reconhecidas pela Justiça) e recursos da educação (Fundeb) foi de Guedes.

 “DESLEAL” E “FURA-TETO”

As declarações atribuídas a Marinho irritaram Guedes. O ministro da Economia afirmou não acreditar que o colega de Esplanada teria falado mal dele. Porém, disse que, se falou, Marinho era “despreparado”, “desleal” e “fura-teto”. —Eu espero que ele não tenha falado nada de mal. Eu não acredito que ele tenha falado isso. Eu realmente não acredito que ele tenha falado mal de mim —disse Guedes a jornalistas à tarde, acrescentando: — Agora, se falou que está querendo furar teto, negócio de precatório, já pode saber: é despreparado, é desleal e confirmou que é um fura-teto. Mas eu não acredito que tenha falado. Segundo interlocutores,

Guedes teria se queixado ao presidente Jair Bolsonaro e pedido a demissão do colega. No fim da tarde, Bolsonaro e Marinho teriam se falado por telefone, e a situação ficou resolvida, segundo fontes do Palácio do Planalto. O burburinho no mercado começou perto do meio-dia, quando houve forte movimentação de alta no mercado de câmbio e juros. Em grupos de mercado e mesas de operação, se procurava o motivo para o comportamento do dólar e das taxas. Pouco depois, começaram a surgir as conversas de que Marinho teria feito os comentários sobre o Renda Cidadã e Guedes. Marinho não quis comentar as declarações de Guedes. No fim da tarde, a assessoria do ministro divulgou nota, alegando que as informações chegaram à imprensa de forma distorcida. O texto dizia ainda que a reunião era fechada eque não houve“desqualificações” e“adjetivações” a agentes públicos, sem mencionar o nome de Guedes. “A reunião teve o intuito de reforçar o compromisso do governo coma austeridade nos gastos e apolítica fiscal. Em sua fala, Rogério Marinho destacou que o governo reconhece a necessidade de construção de uma solução para as famílias que hoje dependem do auxílio emergencial eque essa solução será resultado de um amplo debate com o Parlamento, em respeito à sociedade e às âncoras fiscais que regem a atuação do governo ”, afirma anota.

 SÓ DEPOIS DAS ELEIÇÕES

À noite, Guedes voltou a falar. Ele defendeu a necessidade de criar o Renda Cidadã com respeito ao teto de gastos, mas disse que o programa deve ficar para depois das eleições, conforme antecipou O GLOBO. Para o ministro, há muita “barulheira” sobre o assunto e, por isso, é melhor deixar o tema para depois do pleito de novembro.

— Uma coisa é você furar o teto porque está salvando vidas em ano de pandemia, e isso ninguém pode ter dúvidas. Agora, você furar teto para fazer política, para ganhar eleição, isso é irresponsável com as futuras gerações. Isso é mergulhar o Brasil no passado triste de inflação alta. Segundo Guedes, por conta da disputa eleitoral para aspre feituras, nãoého rad e entrar “nessa brigalhada”: —Uma parte vai aterrissar lá no Bolsa Família, que pode então virar o Renda Brasil. A outra parte precisa serre empregada. Precisamos desonerara folha. M ascomo você desonera afolha? Ah, tem que criar um imposto sobre transação. Ah, não, esse imposto eu não aceito. Você a 40,50 dias da eleição, como é que você vai entrar nessa brigalhada? Guedes disseque o plano paraviabilizar onovopr ogra maé consolidar programas sociais que já existem, proposta que já foi criticada publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro. O benefício poderia também ser impulsionado pelo fim das deduções de educação e saúde no Imposto de Renda. As declarações de ontem marcam mais um degrau na escalada de desentendimentos entre Guedes e Marinho. O clima de tensão entre os dois ministros vem desde o semestre passado, quando Marinho começou a cobrar mais recursos para obras públicas, na contramão do que prega Guedes. Marinho acabou conseguindo nesta semana mais R$ 2,3 bilhões.