O globo, n. 31832, 01/10/2020. Sociedade, p. 12

 

Ano sangrento

Constança Tatsch

Renato Grandelle

01/10/2020

 

 

Violência contra indígenas mais do que dobrou em 2019, diz relatório

 Um relatório divulgado ontem mostra o aumento da violência contra indígenas de 2018 para 2019. Foram 276 ocorrências em 2019, mais que o dobro do registrado ano passado, 110, em casos que vão de racismo e abuso de poder a lesões corporais e homicídios. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sublinhou que, das 19 categorias elencadas em sua publicação, 16 apresentaram aumento de notificações em relação ao ano anterior.

Foram vistos 1.120 casos contra patrimônio, o equivalente a três por dia, segundo o documento “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil”. Nessa categoria, destacam-se as “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, que avançaram 134,9%, passando de 109 para 258 ocorrências.

São crimes que, segundo o relatório, seguem uma sequência: primeiro, os invasores desmatam; depois, vendem as madeiras, tocam fogo na mata, iniciam as pastagens, cercam a área; finalmente, com o terreno “limpo”, colocam gado e, posteriormente, plantam soja ou milho. Semana passada, em pronunciamento à ONU, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “caboclos e indígenas” são os responsáveis por atear fogo em áreas devastadas da Amazônia.

Segundo o relatório do Cimi, “infelizmente, as violências praticadas contra os povos indígenas fundamentam-se em um projeto de governo que pretende disponibilizar suas terras e os bens comuns nelas contidos aos empresários do agronegócio, da mineração e das madeireiras, dentre outros”.

Lucia Helena Rangel, antropóloga e organizadora do relatório, destaca que os assassinatos têm como alvo as lideranças indígenas.

— Houve pequena diminuição dos homicídios em relação a 2018 (de 135 para 113), mas as ameaças de morte passaram de oito para 33 e mais que dobraram em relação a ameaças variadas — destaca Rangel.

— O aumento na violência contra o patrimônio foi assustador. O governo prometeu não demarcar terras indígenas, e não se restringiu a isso. Também devolveu processos para a Fundação Nacional do Índio (Funai) engavetar.

Sócia do Instituto Socioambiental, que não teve envolvimento com o estudo, Adriana Ramos reforça a crítica sobre a atuação da Funai.

— O órgão foi esvaziado, teve iniciativas paralisadas e diretrizes não condizentes com a Constituição, como tentar restringir a ação de servidores em terras indígenas homologadas — condena Ramos.

— Invasores e agressores sentem-se protegidos pelo discurso presidencial, como se houvesse alguma mudança na lei.

Procurada pelo GLOBO, a Funai não respondeu ao pedido de entrevista.

CRIANÇAS VULNERÁVEIS

Com base na Lei de Acesso à Informação, o Cimi obteve da Secretaria da Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, dados parciais sobre casos de suicídio —foram registrados 133, 32 a mais do que em 2018. Também se conseguiu números da mortalidade infantil: os óbitos entre crianças de 0 a 5 anos saltaram de 591 para 825 ocorrências. Entre as doenças mais letais estão diarreia, desnutrição e desidratação.

— As doenças são tratáveis. O que acontece é que, quando as comunidades sofrem restrições, as crianças são as mais afetadas — explica Rangel. — Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, o governo interrompeu o fornecimento de cestas básicas e, em 15 dias, já havia casos de desnutrição no pronto-socorro. Não há equipamento, equipe ou políticas de saúde no Amazonas. É inadmissível.

— As doenças são tratáveis. O que acontece é que, quando as comunidades sofrem restrições, as crianças são as mais afetadas — explica Rangel. — Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, o governo interrompeu o fornecimento de cestas básicas e, em 15 dias, já havia casos de desnutrição no pronto-socorro. Não há equipamento, equipe ou políticas de saúde no Amazonas. É inadmissível.

Os autores do relatório calculam que os números de 2020 indicarão um cenário ainda pior do que o constatado no relatório de 2019. Afinal, o coronavírus somou-se às ameaças já conhecidas.

De acordo com os especialistas, os povos indígenas tomaram a iniciativa “necessária e prudente” de fechar seus territórios com a chegada da pandemia. Mas, ainda assim, não conseguiram impedir ações como de extração de madeira e garimpo. As comunidades ficaram isoladas, sem medicamentos, alimentos ou assistência médica.