Valor econômico, v. 21, n. 5118, 30/10/2020. Especial, p. A20

 

Governadores chamam para si responsabilidade pela agenda climática

Daniela Chiaretti

Anaïs Fernandes

Cristiane Agostine

Gabriel Vasconcelos

30/10/2020

 

 

Com “vácuo” do governo federal, 11 Estados fecham compromisso com propostas do Acordo de Paris

Frente à lacuna deixada pelo governo Jair Bolsonaro em relação à política ambiental, governadores se uniram ontem em torno de uma carta-compromisso pelo clima. Os governadores registraram o alinhamento com as propostas do Acordo de Paris e tentam construir um caminho em comum para compensar a ausência de esforços federais na política climática.

Há resistência, no entanto, de Estados que compõem a Amazônia Legal. Dos nove Estados, quatro (Amapá, Maranhão, Pará e Tocantins) se comprometeram com a carta, iniciativa do Centro Brasil no Clima (CBC), “think tank” apartidário sobre mudanças climáticas, fundado em 2012 pelo ambientalista e ex-deputado Alfredo Sirkis. No encontro, governadores prestaram homenagem a Sirkis, falecido neste ano.

No país, 11 Estados estão comprometidos com as propostas (veja mais em Carta-compromisso propõe retomada ‘verde’ na economia). Ao participarem do Encontro Internacional Governadores pelo Clima, evento promovido ontem pelo CBC, os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), e do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afirmaram que os Estados têm a responsabilidade de fazer um contraponto à falta de ações de Bolsonaro para enfrentar a crise climática.

Para Doria, o papel dos governadores é fundamental para o avanço das políticas públicas sobre mudanças climáticas. “Os governadores, na sua maioria, possuem políticas muito claras de defesa ambiental, diferentemente da política do governo federal. Estamos cumprindo a nossa obrigação”, disse o tucano. “Hoje em dia os Estados estão tomando a vanguarda do processo climático no Brasil, com uma agenda construtiva para preservar o meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas.”

Em sintonia com Doria, Casagrande disse que os Estados devem “fazer uma compensação à ausência do governo federal nesse tema”.

Dino afirmou que os governos subnacionais podem assumir responsabilidade no combate ao desmatamento e queimadas ilegais em seus territórios. A fala veio em um contexto de críticas à inação do governo federal na agenda ambiental. “Nós podemos, sim, combater problemas ambientais gravíssimos, a exemplo do desmatamento e queimadas ilegais”, afirmou.

O governador defendeu a comunidade científica e lembrou dos alertas sobre a situação climática. Em seguida, afirmou que a crise sanitária do coronavírus aprofunda as dificuldades das populações mais pobres, também as mais afetadas pelas mudanças climáticas. “Sabemos que precisamos pautar a temática da recuperação econômica, mas isso não pode ser feito de qualquer maneira. Mudanças profundas nos processos econômicos são vitais para que possamos falar em desenvolvimento. A sustentabilidade integra o âmago do conceito de desenvolvimento.”

Em novo contraponto ao governo federal, Dino defendeu aumento de investimentos em energias renováveis, reflorestamento e programas de reciclagem, e também evocou a importância da cooperação internacional - alvo de críticas de Bolsonaro. “Precisamos fortalecer a cooperação internacional porque nenhuma nação consegue sozinha enfrentar e vencer o aquecimento global e suas consequências.”

Por mais de uma vez, os governadores lembraram a importância de superar a falsa contradição entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Dino defendeu a necessidade de promover a recuperação da atividade sobretudo em meio à crise econômica.

Sem citar atores políticos, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), disse que 2019 ficou marcado por conflitos culturais e mensagens que impuseram uma agenda de antagonismo na discussão climática. “Devemos, acima de tudo, no âmbito cultural, ter a consciência de que é possível, sim, preservar os interesses dos 25 milhões que moram na Amazônia, 8,5 milhões desses no Pará, com as suas vocações, muitas delas extrativista, mineral ou vegetal. É possível sair da lógica de que é incompatível a vocação econômica com a sustentabilidade”. Barbalho convocou os demais governadores a encontrarem uma solução para que a “floresta em pé” seja encarada como ativo econômico e que sua preservação some, e não subtraia, a participação da agropecuária.

O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), falou contra o suposto antagonismo entre desenvolvimento econômico, conservação ambiental e cuidado entre as pessoas. Câmara disse considerar que os governos subnacionais têm papel preponderante nesse esclarecimento e pregou parceria entre todos os níveis de governo e setores da sociedade civil para enfrentar a crise ambiental.

Outros governadores, como o do Piauí, Wellington Dias (PT), do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT) e o próprio Dino citaram a importância da cooperação internacional com outros governos, para o avanço da agenda ambiental.

O teor das declarações contrasta com a condução do governo Bolsonaro na área, que age isoladamente e acumula escaramuças com atores importantes da agenda climática, como Noruega e Alemanha, países doadores do Fundo Amazônia, hoje paralisado.

Os governadores também aproveitaram a ocasião para destacar seus programas ambientais. Casagrande elencou frentes do programa de mudanças climática, como o Plano Estadual de Resíduos Sólidos e as políticas de desenvolvimento regional sustentável. Também disse trabalhar em um planejamento para a bacia hidrográfica da região e na elaboração de um programa de segurança de barragens. O governador mencionou ainda um programa de recomposição da cobertura florestal na bacia do rio Doce, afetada pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG).

Doria disse que São Paulo “defende e incentiva o uso de energias renováveis” e citou o programa de etanol. “O Estado de São Paulo já responde por mais de 50% da geração de bioeletricidade de cana no país.”

Diversas autoridades regionais reafirmaram o comprometimento com o combate ao desmatamento, como o vice-governador do Tocantins, Wanderlei Barbosa. "Preservação é palavra de ordem”, afirmou.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), reforçou que ações para mitigar e antecipar as ocorrências ambientais, agindo de forma preventiva, são muito importantes. Segundo Leite, o Estado foi atingido neste ano por eventos climáticos extremos - grave estiagem, enchentes, ciclone bomba e ameaça de nuvem de gafanhotos - que demonstram a importância de alterar comportamentos. “Esses eventos podem parecer desconectados, mas possuem alguma relação com as mudanças climáticas”, afirmou.

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Carta-compromisso propõe retomada ‘verde’ na economia

Anaïs Fernandes

Cristiane Agostine

Daniela Chiaretti

Gabriel Vasconcelos

30/10/2020

 

 

Grupo volta a se reunir em novembro para discutir agenda

Os governadores envolvidos com a agenda climática se comprometeram ontem com uma carta-compromisso em que pedem que a retomada econômica no Brasil seja também “verde”.

Os políticos institucionalizaram uma aliança suprapartidária pelo enfrentamento à crise climática, com o compromisso de ação continuada e buscando conexões com iniciativas do gênero em outros países. A intenção é construir uma agenda estratégica nacional e internacional.

Os governadores reafirmam a importância do Acordo de Paris. No combate à crise climática dizem que “planos preventivos” são a forma de agir mais inteligente e de menor custo.

Os políticos dizem que avanços na agenda climática e no cumprimento das metas “só serão concretizados com o combate firme a desmatamento e queimadas ilegais, a promoção de energias limpas, a redução da queima de combustíveis fósseis, o aumento no uso dos biocombustíveis, a eletrificação da mobilidade e o incentivo à agricultura de baixo carbono”.

A recuperação econômica “deve ser impulsionada por processos integrados, que possam simultaneamente regenerar ecossistemas, fortalecer empresas e gerar milhões de empregos, aproveitando oportunidades de investimento em energias renováveis, reflorestamento, saneamento, reciclagem, bioeconomia, bem como em inovações tecnológicas e processos produtivos com uso mais eficiente dos recursos públicos e privados.”

Onze Estados se comprometeram com a carta. Respondem por 58% das emissões de gases-estufa do país. Quatro dos nove Estados da Amazônia Legal estão juntos na aliança dos governadores.

Os governadores formaram um fórum para impulsionar a agenda climática. Em novembro deve ocorrer a primeira reunião com a definição da agenda estratégica, disse Sergio Xavier, articulador político do Centro Brasil no Clima (CBC), que promoveu o encontro. “Há oportunidades nesta agenda para o Brasil. Os setores verdes geram mais empregos”, disse Xavier.

“Os efeitos socioeconômicos da atual crise sanitária são e serão severos, retrocedendo níveis de miséria, aprofundando desigualdades e expondo ainda mais a parcela vulnerável da população a intempéries de todo tipo. Superar esta crise exige convergência estratégica de esforços de modo a viabilizar um futuro sustentável, inclusivo e próspero”, diz a carta. O evento foi assistido por 400 pessoas. O ex-ministro da Cultura Gilberto Gil abriu o encontro cantando “Refazenda”.

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"Brasil e EUA não fazem o suficiente”

Anaïs Fernandes

Cristiane Agostine

Daniela Chiaretti

Gabriel Vasconcelos

30/10/2020

 

 

Ex-governador da Califórnia defende ação de Estados, municípios e universidades em favor a ação ambiental

“O governo nacional do Brasil não está fazendo o suficiente, assim como o governo de Trump nos Estados Unidos. Não fazem o que deveriam. Mas nas cidades, nas universidades, nos Estados podemos agir. Podemos e devemos”.

A declaração de Jerry Brown, o ex-governador da Califórnia que fez com que o Estado liderasse a agenda do clima nos Estados Unidos durante sua gestão, foi feita para parabenizar a aliança de governadores brasileiros em torno do combate à crise climática que se formou ontem. “No mundo todo estamos tentando lutar contra a mudança do clima”.

No vácuo da ação climática de governos nacionais negacionistas, governos locais têm tomado a dianteira. Várias alianças de governos subnacionais se formaram no mundo, com governos estaduais e cidades fazendo decisões sustentáveis e construindo políticas públicas. “A liderança pelo clima nos níveis estaduais e municipais é crítica”, disse Aimee Barnes, ex- conselheira-sênior de Jerry Brown.

Ela lembrou que em 2016, quando a coalizão de Estados começou a se formar nos EUA para buscar atingir as metas do Acordo de Paris eram apenas três - Califórnia, Nova York e Washington. Hoje são 25, metade do país em termos populacionais e de PIB. Os Estados da aliança atraíram investimentos, criando 1,7 milhão de empregos. Mais da metade do capital de risco investido em tecnologia limpa nos EUA foi investido na Califórnia. “O Brasil pode fazer o mesmo, tendo êxito com uma economia de zero emissão de carbono, que será o futuro”, seguiu. “Um dos segredos foi a colaboração entre Estados e o compartilhamento de informações”.

“Não poderíamos deixar que a ação americana ficasse para trás, enquanto o governo nacional não faz nada”, disse Reed Schuller, conselheiro-sênior de políticas do governador Jay Inslee, do Estado de Washington, referindo-se à aliança americana. “Nossa coalizão não representa partidos políticos”, seguiu. Os Estados da aliança climática reduziram a poluição em uma taxa duas vezes mais rápida que nas outras regiões. O crescimento econômico verificado foi de 12% nestes Estados, e de 4% nos outros, no mesmo período. “Estamos construindo economias mais limpas e trazendo progresso”, continuou.

“O papel dos municípios, das regiões e dos Estados no combate à mudança do clima é fundamental tanto na União Europeia como no Brasil. E isso se reflete nas atividades de cooperação”, reconheceu Ignacio Ybáñez Rubio, embaixador da União Europeia no Brasil.