Valor econômico, v. 21, n. 5114, 26/10/2020. Especial, p. A14

 

Brasil precisa mostrar que desmatamento não é tolerado, diz Noruega

Daniela Chiaretti

26/10/2020

 

 

Maior doador do Fundo Amazônia vê ‘situação muito infeliz’ com paralisação do mecanismo

Para o Fundo Amazônia voltar a operar, é preciso que o governo brasileiro dê “sinais políticos claros de que a ilegalidade não será tolerada” e que “tem vontade política de conter o desmatamento”. O contribuinte, o governo e o Parlamento noruegueses estão “profundamente preocupados” com os níveis de desmatamento da Amazônia que vêm sendo registrados e com a vulnerabilidade dos povos indígenas. O mundo dos negócios e os investidores financeiros “temem pela sua reputação e pelo risco financeiro, quando o tema é o desmatamento da floresta”.

Os alertas são do advogado Sveinung Rotevatn, 33 anos, ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega, em entrevista ao Valor. O país é o maior doador do Fundo Amazônia, que recebeu mais de R$ 3,4 bilhões desde sua criação, em 2008, e aloca recursos em projetos de desenvolvimento sustentável na região desde que o desmatamento esteja sob controle. A Noruega contribui com mais de 90% dos recursos e tem a Alemanha como parceira. Os recursos são doados, não são empréstimos.

Em 2019, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, interferiu no Fundo Amazônia alegando irregularidades dos projetos geridos pelo BNDES. Isso nunca foi comprovado, mas o fundo deixou de funcionar e os repasses dos doadores foram congelados. Salles tentou retirar a sociedade civil do comitê orientador do fundo, proposta rejeitada pelos doadores.

“É uma situação muito infeliz”, diz o ministro norueguês sobre o congelamento do mecanismo. Ele afirma estranhar a intenção de Salles de tirar as ONGs do conselho. “É uma proposta bastante peculiar porque o envolvimento da sociedade civil no Fundo Amazônia foi parte do desenho original feito pelo Brasil. E esta arquitetura, com a participação da sociedade civil, foi um dos motivos que fizeram com que achássemos que a iniciativa era uma boa ideia”, reage Rotevatn, que comanda um ministério com orçamento de US$ 1,7 bilhão.

“Investidores temem pela sua reputação e pelo risco financeiro quando o assunto é desmatamento da Amazônia”

O ministro lembra que o contrato do fundo diz que todas as partes têm que concordar com mudanças. “Nós não concordamos com as mudanças feitas pelo governo brasileiro na estrutura do conselho. Isso inclui limitar a participação dos atores da sociedade civil.”

Rotevatn registra que o Brasil foi muito bem-sucedido, por anos, em conter o desmatamento e ao mesmo tempo registrar “um desenvolvimento econômico impressionante”. Diz que os doadores esperam que o mecanismo volte a funcionar. “E ainda há dinheiro no fundo para apoiar projetos que ajudem a população e o desenvolvimento da região”, registra.

“Não acho que existe esta escolha entre parar o desmatamento ou o desenvolvimento econômico. Acredito que parar o desmatamento é vital para o desenvolvimento econômico.”

Ele lembra que a ideia e a arquitetura do Fundo Amazônia foram brasileiras. Diz que o modelo de reembolso por desmatamento evitado é tão bom que foi copiado por outros países florestais. A Noruega coloca recursos em fundos similares no Congo, Equador, Etiópia, Guiana, Libéria e Peru. Na Colômbia a parceria é com a Alemanha e o Reino Unido. Na Indonésia, a Noruega destina US$ 1 bilhão, exatamente o montante original do compromisso com o Brasil.

A Noruega continua sendo um parceiro ativo de várias instituições no Brasil, mesmo com a paralisação do Fundo Amazônia. O país tem ajudado em projetos de pagamentos de serviços ambientais de produtores rurais que não derrubam florestas que poderiam legalmente desmatar, por exemplo.

Rotevatn reconhece que os países ricos fizeram erros aos se desenvolver de modo insustentável. “Mas aprendemos com eles. Acho importante não repetir os mesmos erros em países atualmente em desenvolvimento.”

“É importante que o governo demonstre clara vontade política de parar os níveis de desmate que estamos vendo”

A Noruega é um dos maiores produtores de petróleo do mundo, mas está fazendo a transição para a economia verde. A cada dois carros vendidos no país, um é elétrico. “Estamos minando a demanda pelo nosso próprio produto”, diz o ministro. Energias renováveis respondem por 98% da eletricidade do país, que já apresentou uma meta climática mais ambiciosa respondendo ao calendário previsto no Acordo de Paris. Sobre as taxas comerciais que a Europa pode impor a países de alta emissão, ele diz que a preocupação “é que, se implantarmos políticas rígidas e fizermos com que a indústria cumpra padrões ambientais severos, empresas globais possam decidir transferir sua produção para países que não se importam com o ambiente. Isso é competição injusta”.

A seguir trechos da primeira entrevista que Rotevatn concedeu à imprensa brasileira:

Valor: O Brasil foi o primeiro a país ter mecanismo de recompensa ao desmatamento evitado, o Fundo Amazônia. É um bom modelo?

Sveinung Rotevatn: É uma ótima instituição. A ideia de pagamentos por redução de desmatamento foi brasileira. Este mecanismo foi depois copiado por outros países florestais. Quando o Fundo Amazônia foi desenvolvido, todas as regras foram criadas pelo Brasil. Nós nos comprometemos a contribuir com US$ 1 bilhão. Ficamos orgulhosos com os resultados obtidos. É uma ótima forma de apoiar a redução do desmatamento e ajudar no desenvolvimento.

Valor: A Noruega replicou o fundo para outros dez países. Por quê?

Rotevatn: As florestas tropicais são essenciais para a vida no planeta. Garantem o fornecimento de água a bilhões de pessoas, sustentam a produção agrícola, garantem resiliência climática e assim por diante. E porque estes sistemas florestais são tão indispensáveis não só para os países florestais, mas para o planeta inteiro, nos envolvemos com sua proteção. Temos usado a mesma abordagem nestes países daquela sugerida pelo Brasil. Funciona muito bem.

Valor: Como a paralisação do fundo foi recebida na Noruega?

Rotevatn: O congelamento do Fundo Amazônia foi decidido pelo governo e tem amplo apoio do Parlamento e dos noruegueses. Há profunda preocupação na nossa população sobre os acontecimentos na Amazônia e a aparente falta de vontade política de parar o desmatamento. Em razão disso, paralisamos os desembolsos. É uma situação muito infeliz.

Valor: Há esperanças de que o Fundo Amazônia volte a operar?

Rotevatn: Espero que sim. Temos ainda um compromisso político forte de cooperar com países florestais. Não há nenhuma dúvida sobre isso. Estamos ansiosos em cooperar com o Brasil e seguir com a experiência bem-sucedida que tivemos. O Brasil foi muito bem-sucedido, por anos, em conter o desmatamento e ao mesmo tempo registrar um desenvolvimento econômico impressionante. Estamos tristes e preocupados com a situação atual, mas o Brasil mostrou resultados no passado, pode mostrar novamente. Esperamos reabrir o Fundo Amazônia em algum momento. E ainda há dinheiro no fundo para apoiar projetos que ajudem a população e o desenvolvimento da região.

Valor: Em 2019, o governo Bolsonaro retirou a participação da sociedade civil no conselho do fundo. O senhor concorda com isso?

Rotevatn: É uma proposta bastante peculiar porque o envolvimento da sociedade civil no Fundo Amazônia foi parte do desenho original feito pelo Brasil. E esta arquitetura, com a participação da sociedade civil, foi um dos motivos que fizeram com que achássemos que a iniciativa era uma boa ideia. Para a Noruega é importante incluir um amplo conjunto de “stakeholders” nas decisões do fundo. Tem sido uma estrutura bem-sucedida. Nosso contrato com o Brasil especifica que os países têm que concordar com as mudanças feitas, e nós não concordamos com as mudanças feitas pelo governo brasileiro na estrutura do conselho. Isso inclui limitar a participação dos atores da sociedade civil.

Valor: Vocês ainda estão negociando com o governo brasileiro?

Rotevatn: Estamos em diálogo com as autoridades brasileiras. Apreciamos muito a conversa que tivemos com o vice-presidente Hamilton Mourão. Notamos seus esforços em conter o desmatamento. Sinais políticos claros do governo brasileiro de que a ilegalidade não será tolerada serão essenciais para esse processo seguir em frente.

Valor: A Noruega tem ajudado no desenvolvimento sustentável do Brasil além do Fundo Amazônia?

Rotevatn: O Fundo Amazônia é muito importante, mas também nos relacionamos diretamente com um amplo espectro de organizações no Brasil. Temos feito isso nos últimos 12 anos. Vamos continuar a trabalhar com eles e com todos os atores que estão interessados em reduzir desmatamento. Estamos trabalhando em sistemas com produtores rurais que são pagos para manter parte de suas florestas que poderiam legalmente desmatar. Iremos apoiar investimentos na produção agrícola sustentável através do fundo verde. Estamos cooperando com atores brasileiros e somos bem ativos.

“Investidores temem pela sua reputação e pelo risco financeiro quando o assunto é desmatamento da Amazônia”

Valor: Qual a imagem do governo Bolsonaro e de sua política ambiental na Noruega?

Rotevatn: Estamos sempre abertos a cooperar com qualquer que seja o governo eleito dos países parceiros. Isso, claro, inclui o governo Bolsonaro. Mas há uma grande preocupação na Noruega com o contínuo desmatamento da Amazônia e, em particular, com a situação vulnerável dos povos indígenas no Brasil. Recebo cartas toda semana pedindo que solicitemos das autoridades brasileiras progresso concreto antes de reabrir o Fundo Amazônia. A preocupação não vem apenas dos partidos políticos e cidadãos noruegueses, mas também de negócios e investidores financeiros. Eles temem pela sua reputação e pelo risco financeiro quando o assunto é desmatamento da Amazônia. É importante que o governo brasileiro demonstre clara vontade política de parar os sérios níveis de desmatamento que estamos vendo.

Valor: Uma crítica frequente dos países em desenvolvimento é que as nações ricas se desenvolveram à custa de suas florestas e agora querem que os outros preservem as suas. Preservar e desenvolver é viável para Brasil, Congo, Indonésia?

Rotevatn: Não há dúvida que isso é possível e o melhor exemplo é o Brasil. Vimos por muitos anos o Brasil sendo bem-sucedido reduzindo o desmatamento e, ao mesmo tempo, mostrando grande desenvolvimento econômico. Há muitos estudos que demonstram que o gerenciamento sustentável das fazendas pode aumentar a produção agrícola sem que seja necessário desmatar mais. E, sem as nossas grandes florestas tropicais, no longo prazo não haverá agricultura ou desenvolvimento econômico porque os efeitos do desmatamento no clima vão fazer com que haja um decréscimo nos recursos hídricos, ameaças graves à biodiversidade e enfraquecimento dos sistemas de produção. Não acho que existe esta escolha entre parar o desmatamento ou o desenvolvimento. Acredito que parar o desmatamento é vital para o desenvolvimento econômico.

Valor: Mas não foi o caminho dos países ricos.

Rotevatn: Tenho que ser honesto com o que ocorreu historicamente nos países desenvolvidos. No desenvolvimento econômico da Noruega, cometemos erros, mas aprendemos com eles. Durante muitos anos gerenciamos de forma errada nossos estoques de peixes, o que representou grande ameaça à pesca porque não era um manejo sustentável. Agora temos um ótimo sistema e isso não levou a um decréscimo econômico, ao contrário. Erros foram feitos em sustentabilidade nos países industrializados, mas aprendemos com eles. Acho importante não repetir os mesmos erros em países atualmente em desenvolvimento.

Valor: A Noruega é um grande produtor de petróleo. Investir tanto em florestas é uma forma de compensar as emissões de combustíveis fósseis? É uma forte contradição?

Rotevatn: Não deve ser visto como uma compensação. A Noruega é um país rico, e é central, para se combater a mudança do clima e parar a perda da natureza, que os países desenvolvidos contribuam mais. Países mais ricos têm que contribuir mais em finanças do clima, por exemplo.

Valor: E sobre o petróleo?

Rotevatn: Há anos a Noruega tem sido um grande produtor de petróleo, mas a produção vai declinar nas próximas décadas. E estamos minando a demanda pelo nosso próprio produto porque hoje, a cada dois carros vendidos na Noruega, um é elétrico. Investimos pesado em renováveis e tecnologias de baixa emissão. Estamos fazendo a transição na nossa economia, gastando muito nisso e ajudando outros países. Estamos envolvidos na transição verde da nossa economia.

Valor: Qual a fatia das renováveis na matriz elétrica da Noruega?

Rotevatn: É de 98% na rede elétrica. Os combustíveis fósseis são usados nos transportes. Estamos tentando reduzir o consumo.

Valor: Estamos às vésperas da eleição americana. Se o democrata Joe Biden vencer, os EUA vão trilhar a descarbonização da economia assim como a União Europeia. Qual o impacto deste grande movimento?

Rotevatn: Queremos cooperar com quem quer que vença a eleição. Espero que o vencedor tente fazer com que os EUA assumam suas responsabilidades em combater a mudança do clima. Foi infeliz que tenham decidido sair do Acordo de Paris e esperamos que voltem, em algum momento.

Valor: As economias mundiais podem se adaptar à emergência climática e à recuperação da covid? Há dinheiro para isso? É viável?

Rotevatn: Sim. Colegas de outras partes do mundo estão preocupados em fazer com que a retomada da economia seja verde. É correto observar quanto de ação há por trás destas palavras, mas a maneira como a União Europeia tem conduzido isso me parece bem sensível. Quando se quer reconstruir a economia, há escolhas a fazer. Pode-se escolher entre investir em energias renováveis ou em usinas a carvão. Fazer agora a decisão certa para o futuro é um movimento sábio. A covid-19 teve efeitos horríveis na saúde pública, mas algumas cidades viram efeitos positivos no ar mais limpo, no céu mais claro, em menos poluição. Se pudermos trazer estes aspectos positivos que testemunhamos, será excelente. Temos que mudar das usinas de carvão para as renováveis, substituir carros a gasolina por elétricos. Com movimentos inteligentes, podemos melhorar a saúde das pessoas, parar o desmatamento, a perda de biodiversidade e combater a mudança do clima. É um ótimo negócio.

Valor: Haverá sanções comerciais para os países que não cumprirem seus compromissos climáticos? A União Europeia fala em taxa de carbono de fronteira, este debate também existe nos EUA.

Rotevatn: Apoio o comércio livre. Acho que é a melhor maneira de aumentar a produção, reduzir a pobreza e permitir desenvolvimento. Mas comércio livre significa comércio justo e os países têm que competir no mercado nos mesmos termos. A preocupação da União Europeia é que, se implantarmos políticas rígidas e fizermos com que a indústria cumpra padrões ambientais severos, empresas globais possam decidir transferir sua produção para países que não se importam com o ambiente. Isso é competição injusta e a razão pela qual a UE vem debatendo este ponto. Mas implantar este tipo de tarifa de modo adequado e justo é tarefa difícil. A União Europeia ainda não decidiu se e como adotará esta medida. Minha posição é que comércio livre é um bom caminho, deveríamos apoiá-lo e torná-lo justo também para o ambiente. Quando negociamos com outros países, o ambiente tem prioridade na agenda.

Valor: O senhor preside a Assembleia Ambiental das Nações Unidas [Unea]. Tem defendido uma decisão internacional para o fim do lixo plástico nos mares. O que tem em mente?

Rotevatn: Há consciência crescente no mundo sobre a grande ameaça que a poluição vem causando na vida marinha. Há mais países pedindo por um acordo global para parar com a poluição nos oceanos. Isso é prioridade para a Noruega há anos e sentimos que há momento político agora. A Unea tem sido a arena onde estes tópicos devam ser endereçados. Temos que garantir que os países tenham sistemas de manejo de lixo para combater a poluição em geral e plásticos em particular, que vai acabar nos rios e depois nos oceanos. Precisamos de padrões para os produtos que tornem a reciclagem possível. Não temos nenhum acordo global que cubra esses tópicos. Este tipo de cooperação multilateral do sistema das Nações Unidas é muito importante agora não só para pandemias, mas para a crise climática.

Valor: Os países aumentarão as metas climáticas como esperado para 2020? A Noruega fará isso?

Rotevatn: Já fizemos. Fomos o terceiro país a aumentar a ambição. A UE está avançando em sua meta, a China sinaliza que se comprometerá com mais. Esperamos que o maior número de países possível, incluindo o Brasil, entregue metas climáticas mais ambiciosas até o fim de 2020, que é o “deadline” do Acordo de Paris. Não se pode parar o aquecimento global com países agindo isoladamente, todos têm que contribuir.