O Estado de São Paulo, n.46294, 17/07/2020. Metrópole, p.A25

 

20% de soja e carne exportadas para a UE seriam "ilegais"

Giovana Girardi

17/07/2020

 

 

Produtos teriam origem em áreas desmatadas ilegalmente; para ministério não se pode 'vilanizar & agropecuária'

No auge da cobrança de investidores estrangeiros ao Brasil sobre o aumento da devastação da Amazônia, um estudo divulgado ontem pela revista Science estima o peso da contribuição do desmatamento ilegal em propriedades privadas cuja produção e exportada para a União Europeia, chegando até a 20%. Já o Ministério da Agricultura destacou que a situação envolve poucos produtores e não se deve “vilanizar” a agropecuária.

Cruzando dados de satélite sobre a perda de floresta com informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um grupo de pesquisadores de Brasil, EUA e Alemanha avalia que embora apenas 2.% das propriedades localizadas na Amazônia e no Cerrado sejam responsáveis por 62% do desmatamento ilegal na região, uma parcela dessa devastação estaria ligada a commodities agrícolas de exportação. Os pesquisadores, liderados por Raoni Rajão, do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG, estimam que cerca de 20% da soja e pelo menos 17% da carne produzidas nos dois biomas e exportadas para a União Europeia estão “potencialmente contaminadas” com desmatamento ilegal.

Já informado sobre o estudo, o vice-presidente Hamilton Mourão, que coordena o Conselho da Amazônia e disse que conhece Rajão, admitiu que os dados atrapalham a imagem do País e as exportações. “Obvio que atrapalha. Mas a Agricultura está avaliando e assim que tiver os números corretos vai se contrapor e esclarecer.” O Ministério da Agricultura, por meio de nota, não questionou os dados. “Assim como o título do artigo induz e os dados demonstram, mais de 90% dos produtores rurais não estiveram envolvidos com qualquer desmatamento ilegal. Dessa forma, não podemos vilanizar a agropecuária.” Já a Abiovc, entidade que congrega as traders exportadoras de soja, afirmou que o trabalho traz uma “visão distorcida” (leia mais à frente).

No artigo, o grupo classifica essas propriedades com desmatamento como “maçãs podres do agronegócio brasileiro”, e sugere que, com as ferramentas já disponíveis, é possível que o governo aja com precisão para conter o problema. Tanto as traders da soja quanto os frigoríficos que exportam carne assumiram compromissos de não comercializar produtos vindos de desmatamento ilegal como a moratória da soja e o termo de ajustamento de conduta da pecuária , mecanismos que ajudaram a reduzir os níveis de desmatamento. Mas haveria, segundo eles, algumas brechas e falhas no rastreamento de toda a cadeia, principalmente no caso do gado, que facilitam a ocorrência de cortes da floresta.

'Atrapalha'

“Óbvio que atrapalha (o estudo). Mas a Agricultura está avaliando e assim que tiver os números corretos vai se contrapor”.

Hamilton Mourão VICE PRESIDENTE DA REPUBLICA

Os pesquisadores refinaram investigação até o nível da propriedade, avaliando onde provavelmente ocorreu desmatamento ilegal e foram produzidas as commodities exportadas. Foram cruzados mapas de uso de solo de desmatamento com informações de 815 mil propriedades com registro no CAR.

No cadastro há informações declaradas pelos próprios proprietários sobre o cumprimento do Código Florestal, como a presença de Reserva Legal e de área de preservação permanente. Um plantio ou uma pastagem dentro dessas áreas, por exemplo, foi considerado ilegal. Controle. Os pesquisadores compilaram também dados da Trade, uma ferramenta internacional de transparência focada em avaliar o risco para a floresta das cadeias de suprimento, e da guia de transporte animal (GTA) , emitida quando animais são comercializados entre propriedades e frigoríficos.

De acordo com trabalho, 45%das propriedades rurais da Amazônia e 48% do Cerrado que fornecem soja e carne para exportação não cumprem os limites do desmatamento estabelecidos no Código Florestal. Os pesquisadores afirmam que das 53 mil propriedades produtoras de soja nas duas regiões, 20% cultivaram soja em terras que tiveram algum tipo de desmatamento depois de 2008.

Como a moratória da soja e uma medida bem mais restrita, os pesquisadores olharam para desmatamento na propriedade como um todo, e não somente para a área desmatada ocupada pela soja. Nesse caso, a estimativa e que apenas 1% da soja seja cultivado em local desmatado ilegalmente. Mas o valor fica entre 18% e 22% quando se vê o imóvel rural como um todo.

“Se a moratória está sendo efetiva para evitar desmatamento nas áreas de soja, isso não significa que o sojicultor não desmate ilegalmente”, argumenta Rajão.

“Ele pode ser limitado pela moratória, mas não deixa de desmatar. Ele diversifica a estratégia de desmatamento (colocando pasta ou outros czdtivos,p0r exemplo), para evitar as imposições.

Por isso dizemos que a soja está *contaminada' com o desmatamento”, acrescenta. Pela conta dos pesquisadores, cerca de 2 milhões de toneladas de soja cultivadas em propriedades que tiveram algum tipo de desmatamento ilegal podem ter chegado a União Europeia entre 2008 e 2019 500 mil toneladas seriam da Amazônia. Na análise, os pesquisadores calcularam que entre as 4,1 milhões de cabeças negociadas em matadouros, pelo menos 500 mil cabeças provem diretamente de propriedades que podem ter desmatado ilegalmente. Isso representa 2% da carne bovina produzido na Amazônia e 13% no Ccrrado. A base de dados usada foi restrita aos dados do Pará e do Mato Grosso por dificuldade de acesso ao GAR de outros Estados. Quando avaliados os fornecedores indiretos, os autores estimam que cerca de 60% das cabeças abatidas poderiam ter sido “contaminados” com o desmatamento ilegal (44% na Amazônia e 66% no Cerrado). Fora da lista. A Abiove afirmou, por meio de nota, que “a soja produzida em áreas desmatadas ilegalmente, embargadas pela fiscalização ambiental e incluídas na lista de trabalho escravo não entra na cadeia produtiva do setor”. A entidade criticou o artigo dos pesquisadores, sustentando que ele “provoca uma visão distorcida” da questão.

Segundo ela, “o rigor na execução da moratória contribuiu para a queda do desmatamento da Amazônia associado a soja, uma vez que foram plantados apenas 80 mil hectares de soja em áreas desmatadas a partir de 2008”. O Ministério da Agricultura disse que “entende que o combate a ilegalidade deve ser atacado”. Afirmou que “o estudo traz luz a importantes estratégias, como o avanço nas agendas da regularização fundiária e ambiental, bem como os incentivos à agricultura sustentável, com tecnologias de baixa emissão de carbono e agregação de valor nas cadeias da biodiversidade”. A pasta afirmou ainda que vai convocar os cientistas para avaliar detalhadamente cada conclusão do artigo A Associação Brasileira da 111 dústrias Exportadores de Carnes Industrializadas (Abiec) disse que não iria comentar o estudo. A reportagem pediu e não recebeu nenhum posicionamento do Ibama, que faz a fiscalização de áreas desmatadas;