O globo, n. 31830, 29/09/2020. Economia, p. 19

 

Renda cidadã

Marcello Corrêa

Geralda Doca

Gabriel Shinohara

29/09/2020

 

 

Proposta do governo de usar precatório e recursos do Fundeb é mal-recebida

 Depois de semanas de expectativa,líderes do governo e do Congresso apresentaram ontem uma solução para financiar o Renda Cidadã, programa social para substituir o Bolsa Família e o auxílio emergencial em 2021. Mas a proposta foi mal recebida por parlamentares, especialistas e analistas do mercado financeiro. O principal ponto do plano é adiar o pagamento de dívidas contraídas pela União em processos judiciais nos quais saiu derrotada para custear o novo benefício. Foi sugerido ainda o uso de recursos do Fundeb, o fundo da educação básica, para ampliar os repasses. Para especialistas, as ideias apontam para um aumento do endividamento e uma flexibilização indireta do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas à inflação.

O anúncio das medidas foi feito ontem, após reunião no Palácio da Alvorada entre o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e lideranças do Congresso, que apresentaram as linhas gerais. O GLOBO obteve uma minuta da proposta de emenda à Constituição (PEC) que deve ser apresentada hoje pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do texto.

A principal fonte de recursos viria do atraso no pagamento das dívidas judiciais, tecnicamente chamadas de precatórios, como antecipado no site do GLOBO na manhã de ontem. No Orçamento para o ano que vem, o governo reservou R$ 55,5 bilhões para honrar esses débitos, o que inclui a concessão de benefícios solicitados na Justiça, por exemplo.

Hoje, a Constituição obriga o governo federal a honrar esses compromissos de uma vez só. Na proposta apresentada ontem, os pagamentos ficariam limitados a 2% da receita líquida da União. Com isso, só seriam quitados R$ 16 bilhões do total devido. A manobra abriria um espaço de R$ 39,4 bilhões em 2021, que poderiam ser revertidos para o novo programa social.

ENDIVIDAMENTO INDIRETO

Na prática, isso significa financiar transferência de renda por meio de endividamento indireto, explicaram especialistas em contas públicas.

—Eles não estão cancelando permanentemente uma despesa, estão “barrigando” para frente. Não pagam o valor integral devido eu sampara outra coisa, mas lán afrente a despesa vai ter ques erp aga—avalia o coordenador de Fiscalização e Contro ledo Orçamento da Câmara, Ricardo Volpe.

Ouso dos recursos do Fundebtambémf oi alvo de críticas. Hoje, o dinheiro transferido pela União para reforçara educação básica em estados e municípios não está sujeito ao teto de gastos. A proposta prevê que até 5% desses recursos sejam direcionados ao novo programa. Aparcela destinada ao Renda Cidadã também fi cari aforada trava fiscal.

O ministro do Tribunal de Contas da União( T CU) Bruno Dantas considera amano brau mafor made mascarara mudança na regra.

“Emenda constitucional pode mudar o teto de gastos? Juridicamente, claro que sim. Op roble maéo significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável. Emenda constitucional pode tirar dinheiro do  Fundeb para mascarar mudança do teto? Pode, mas por que tergiversar?”, escreveu Dantas em uma rede social.

Nos bastidores, nem mesmo técnicos que participaram das discussões concordam com o plano. A proposta só foi apresentada na noite de domingo, segundo fontes, após lideranças políticas criticarem as simulações iniciais, que continham medidas que enfrentariam maior resistência, como congelamento de despesas.

SOLUÇÕES GERAM INCERTEZA

Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, diz que as duas soluções são “péssimas” e geram incerteza:

—O governo quer cumprir o teto e, ao mesmo tempo, não quer cancelar despesas. Aí veio com duas soluções péssimas, “bypassar” o teto, via Fundeb, que é uma exceção prevista na regra, e postergar o precatório. Não corta um centavo de despesa e cria uma montanha de despesas novas.

Apesar da presença de Guedes na cerimônia de anúncio ontem, integrantes da equipe econômica não apoiaram a ideia de recorrer aos precatórios para financiar o programa social. Uma fonte avalia que “seria ótimo” se a repercussão negativa da ideia fizesse com que o plano original da área técnica, que previa a revisão de benefícios considerados ineficientes, como o abono salarial, voltasse a ser considerado por Bolsonaro.

Já ouso do Fundebéb em visto por integrantes da área econômica. Como revelou o GLOBO em julho, a ideia chegou a ser levada por Guedes ao Congresso, mas o ministro acabou derrotado. Uma PEC aprovada em setembro prevê a ampliação dos repasses da União ao fundo para 23%, ao longo dos próximos anos

O retorno da proposta derrotada foi criticado por parlamentares ligados à educação.

— Tirar dinheiro da educação é lesa-pátria na minha opinião. Agora, precisa de programas sociais? Qualquer país desenvolvido do mundo precisa, e nós precisamos e vamos precisar sempre. M asis sotem que ser com recursos da assistência, da promoção — disse o senador Flávio Arns (PodemosPR), relator do Fundeb.

A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) também duvida da aprovação de um projeto que retire recursos do Fundeb:

—O maior risco é chegar no fim do ano sem solução, sem consenso, e, com o fim do auxílio emergencial, expor milhões de famílias à pobreza.

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Com anúncio, Bolsa fecha em queda, e dólar, a R$ 5,635

Gabriel Martins

29/09/2020

 

 

Ibovespa cai 2,41%. Forma de financiamento do programa preocupa mercado, que também esperava progresso na reforma tributária

 A forma que o governo encontrou para financiar o Renda Cidadã não agradou ao mercado, fazendo com que o dólar comercial fechasse o dia com alta de 1,42%, a R$ 5,635, maior cotação desde 20 de maio. Na máxima, a divisa atingiu R$ 5,675. Na Bolsa, o Ibovespa (índice de referência da B3), que subia durante a manhã, encerrou em queda de 2,41%, aos 94.666 pontos. Segundo analistas, houve frustração também com a falta de progresso na reforma tributária.

De acordo com o governo, o novo programa social vai usar recursos de precatórios (ordens de pagamento após condenações judiciais) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o que deixou o mercado apreensivo.

— O mercado esperava que fosse retira doum gasto permanente em troca de um novo. A limitação nos precatórios tende a abrir um espaço temporário no Orçamento, mas lá na frente essa dívida terá de ser paga. Na primeira leitura, não é uma medida sustentável no longo prazo — destaca Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos.

Os analistas da Genial Investimentos também viram um adiamento de despesas:

“O governo estaria apenas adiando uma despesa para aumentar outra. Ou seja, estaria aumentando os gastos, ainda que o teto não seja rompido em 2021. Não é um sinal de austeridade fiscal.”

RISCO FISCAL

Arnaldo Lima, diretor do Grupo MAG, destacou que, embora os precatórios não sejam contabilmente classificados como dívida pública, economicamente o são, e compõem os riscos fiscais da União.

O fato de parlamentares e Planalto não terem chegado a um acordo sobre a próxima fase da reforma tributária também pesou negativamente.

— O mercado está precificando uma leitura de que o político está descasado com as necessidades atuais do país, especialmente as reformas estruturais — explica Mauricio Pedrosa, gestor da Á fira Investimentos, lembrando que o cenário interno precisa favorecera atração e manutenção de recursos no Brasil.

Os juros futuros tiveram forte alta diante dorisco coma parte fiscal. A taxa do contrato de Depósito Interfinanceiro (DI) para janeiro de 2022 subiu de 2,85% para 3,01%. No contrato mais longo, para janeiro de 2027, o avanço foi de 7,21% para 7,56%.

—A reforma tributária é extremamente importante para o país, porque elevaria o potencial de crescimento ao longo da próxima década. A falta de um acordo sobre essa medida aumenta o pessimismo sobre como o Brasil vai conseguir reduzir sua dívida de maneira sustentável — comenta Luciano Rostagno, estrategista-chefe do banco Mizuho.