O globo, n. 31830, 29/09/2020. País, p. 4

 

A denúncia

Juliana Dal Piva

Chico Otavio

Bela Megale

29/09/2020

 

 

Para Ministério Público, Flávio usou R$ 2,7 milhões desviados da Alerj

 Depois de mais de dois anos, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) concluiu a investigação sobre a suposta “rachadinha” e identificou que o senador Flávio Bolsonaro (RepublicanosRJ) usou R$ 2,7 milhões em dinheiro vivo de recursos obtidos por meio do esquema. O GLOBO apurou que Flávio e o ex-assessor Fabrício Queiroz serão denunciados à Justiça por organização criminosa, peculato e lavagem de dinheiro.

De acordo com a apuração, o senador liderava a organização, que teria Queiroz como operador. Então funcionário do antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, Queiroz, segundo o MP-RJ, arrecadava parte do salário de outros assessores e repassava os valores para o senador.

A investigação aponta que a origem do dinheiro foi dissimulada por Flávio de três maneiras: por meio da compra de imóveis, pelo pagamento de despesas pessoais e com a entrada de dinheiro em espécie na loja de chocolates da qual é sócio — recursos que seriam sacados posteriormente.

A denúncia do MP-RJ, com cerca de 300 páginas, já está pronta e seria entregue ontem ao Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ). No entanto, durante a transmissão da peça, pelo sistema de protocolo digital, o sistema eletrônico falhou, provavelmente pelo volume dos autos apresentados. Até o fim da noite de ontem, o Ministério Público ainda fazia novas tentativas de enviar o material.

Em nota divulgada após a publicação da reportagem, o MP-RJ afirmou “que, até o momento, não há denúncia ajuizada contra o atual senador Flávio Bolsonaro nas investigações referentes a movimentações financeiras em seu gabinete no período em que era deputado estadual”.

Relatórios da investigação citam 23 ex-assessores de Flávio — muitos apontados como “fantasmas” —, divididos em três grupos. O primeiro, compostopor 13 ex-funcionários ligados a Queiroz, é responsável por R$ 2,06 milhões em depósitos na conta bancária do ex-assessor, ao longo de 11 anos —69% do valor em dinheiro vivo. Além disso, os saques totalizaram R$ 2,9 milhões durante o período.

Fazem parte do segundo grupo Danielle Nóbrega e Raimunda Veras Magalhães, respectivamente, exmulher e mãe de Adriano Nóbrega, ex-capitão do Bope e líder de uma milícia de Rio das Pedras, morto em fevereiro. Elas repassaram R$ 200 mil para Queiroz — as pizzarias de Raimunda transferiram outros R$ 200 mil para o ex-assessor.

O terceiro grupo contém dez ex-assessores residentes em Resende, no Sul fluminense. Nove deles têm parentesco com Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher e mãe do filho mais novo do presidente Jair Bolsonaro. Dos integrantes deste núcleo, seis sacaram em espécie mais de 90% dos salários recebidos, e outros três, mais de 70%. As retiradas somaram R$ 4 milhões.

Um dos destinos do volume arrecadado, segundo o MP-RJ, era a loja de chocolates, que recebeu R$ 1,6 milhão em espécie fruto de “recursos ilícitos inseridos artificialmente no patrimônio da empresa”. Ao fazer um cruzamento entre os créditos declarados pela loja com o faturamento auditado pelo shopping onde ela funciona, o MP-RJ verificou a diferença de R$ 1,6 milhão entre 2015 e 2018 —a investigação sustenta que o montante tem origem na “rachadinha”. Ao mesmo tempo, a franquia informou que recebeu R$ 1,7 milhão em pagamentos em dinheiro vivo, cerca de 37% do total arrecadado.

Em outra frente, transações imobiliárias foram usadas para ocultar R$ 892,6 mil. Em um dos casos, Flávio e sua mulher, Fernanda Bolsonaro, declararam em cartório terem pago R $310 mil por dois apartamentos em Copacabana, em 2012. No entanto, o procurador dos proprietários depositou, no mesmo dia da venda, outros R$ 638,4 mil em dinheiro vivo na própria conta. Flávio admitiu ainda, em depoimento ao MP-RJ, que pagou R$ 86,7 mil com dinheiro em espécie, par aduas construtoras durante a aquisição de 12 salas comerciais na Barra da Tijuca, em 2008.

BOLETOS EM DINHEIRO VIVO

Já na compra de um imóvel em Laranjeiras, em 2011, o Ministério Público aponta duas situações de lavagem de dinheiro. Uma delas é um depósito de R$ 25 mil feito por Queiroz no dia 15 de agosto de 2011 na conta de Fernanda para ajudar abancara entrada de R $110,5 mil do apartamento. Outro episódio refere-se a um boleto de R$ 16,5 mil, das parcelas do financiamento do imóvel, quitado por um policial militar, que disse ter sido ressarcido em dinheiro vivo por Flávio.

O senador comprou ainda outro apartamento em 2014, na Barra, e pagou R$ 30 mil em espécie por móveis que estavam na unidade.

No caso das despesas pessoais, a investigação encontrou imagens de Queiroz pagando as mensalidades escolares das duas filhas de Flávio e Fernanda em outubro de 2018, em um total de R$ 6,9 mil, pagos em espécie. Além disso, outros 114 boletos também foram pagos com dinheiro vivo, totalizando R$ 261,6 mil. Os promotores assinalam ainda que no mesmo período dos pagamentos não ocorreram saques correspondentes nas contas do casal que apontassem a origem do dinheiro. O senador, que em outras ocasiões, já negou irregularidades, não se manifestou ontem.