Valor econômico, v. 21, n. 5112, 22/10/2020. Brasil, p. A8

 

Bolsonaro já sabia de acordo sobre vacina de SP

Raphael Di Cunto

Matheus Schuch  

Rafael Bitencourt

22/10/2020

 

 

Presidente faz gesto político ao desautorizar ministro da Saúde, mas não pretende demiti-lo

O acordo fechado pelo ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em torno da produção da vacina chinesa para a covid-19 deu munição para um dos principais adversários do presidente Jair Bolsonaro e levou a uma desautorização pública do ministro. Bolsonaro, porém, não pretende demiti-lo, segundo fontes. Auxiliares palacianos ouvidos pelo Valor atribuem o caso a um “erro de comunicação”, já que o presidente sabia antecipadamente das tratativas, e garantem que a relação dele com o general não ficou estremecida.

Os embates deixaram em suspense como ficará o acordo, que dependerá ainda do efetivo registro da vacina. Segundo o diretor-geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barras Torres, não há nenhum pedido de registro formalizado hoje, apenas a autorização para o desenvolvimento de vacinas por quatro laboratórios. Ele não quis estabelecer um prazo para o aval, mas prometeu que não haverá “interferência externa” na decisão. “Nós nos manteremos fora da discussão política, fora de qualquer outra discussão que não seja o norte técnico e científico.”

Pazuello assinou anteontem protocolo de intenções para comprar a vacina que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, em parceria com a chinesa Sinovac, caso ela tenha a eficácia aprovada. “A vacina do Butantan será a vacina do Brasil”, disse o ministro na teleconferência com os governadores. “O Butantan já é o grande fabricante de vacinas para o Ministério da Saúde, produz 75% das vacinas que nós compramos”, reforçou na ocasião.

Doria, que pretende disputar com Bolsonaro a eleição presidencial de 2022, capitalizou o fato politicamente, destacando o acordo para distribuição da vacina desenvolvida por seu governo. Além disso, apoiadores do presidente passaram a reclamar nas redes sociais da compra da “vacina chinesa” e da intenção do governador de tornar a vacinação contra a covid-19 obrigatória.

Bolsonaro, então, afirmou pelo Twitter que não haverá compra da vacina chinesa e que não colocará dinheiro num medicamento sem eficácia - embora ele já tenha assinado medida provisória para liberar R$ 1,9 bilhão para a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca, também em fase de testes, e tenha determinado a produção e compra de hidroxicloroquina, remédio que se provou ineficaz contra a covid.

O dia foi de embate e ataques entre Doria e Bolsonaro, tendo como pano de fundo a narrativa da pandemia e a eleição presidencial de 2022. Enquanto o presidente se punha ao lado de apoiadores e acusava o governador paulista de agir politicamente, o tucano rebatia que Bolsonaro deveria pensar na vida dos brasileiros e na ciência - palavra repetida à exaustão em suas várias agendas em Brasília ontem.

Para Bolsonaro, o governador fez “jogo político” e “distorceu” a fala do ministro (que, porém, foi gravada e distribuída pelo governo paulista). “Houve uma distorção por parte do João Doria no tocante ao que ele [Pazuello] falou. Ele tem um protocolo de intenções, já mandei cancelar se ele assinou. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela [no mundo], a não ser nós”, afirmou à imprensa durante agenda no interior de São Paulo.

Já Doria adotou o discurso de que espera que Bolsonaro repense essa decisão e siga o ministro, elogiado por ele diversas vezes pelas medidas “técnicas e seguindo a ciência”. “É hora de paz, hora de entendimento. Presidente Bolsonaro, vamos salvar as vidas dos brasileiros, dos que o elegeram e dos que não o elegeram. Seja grande. Agora é hora de vacinação, não de eleição”, disse ele. “Tudo que precisamos é um presidente que seja líder, mais de 155 mil brasileiros perderam sua vida”, reforçou.

Apesar da acusação do presidente sobre uma distorção, a assinatura do protocolo para compra de 46 milhões de doses foi divulgada inclusive nos canais oficiais do Ministério da Saúde. Diante da irritação do presidente, as postagens foram apagadas horas depois. O ministério divulgou ainda um comunicado oficial dizendo que o ministro foi “mal interpretado”, que não há qualquer compromisso de compra da vacina do governo de São Paulo e que o protocolo não tem “caráter vinculante”.

O Valor apurou que Bolsonaro não foi surpreendido pelas tratativas de Pazuello com governadores. O presidente já estava informado da negociação. O que o incomodou, segundo dois auxiliares, foi o que eles chamam de “postura política” dos governadores em “faturar” com a notícia. Bolsonaro, disseram, deve manter esse discurso e minimizar a pandemia.

“As vacinas têm que ter uma comprovação científica, diferente da hidroxicloroquina. Não pode inalar [sic] uma coisa na pessoa e o malefício ser maior que o possível benefício”, disse ontem o presidente, que passou meses defendendo o medicamento sem eficácia.

O Brasil registrou 571 mortes provocadas pela covid-19 nas 24 horas até 20h de ontem. Com isso, o total de óbitos aumentou para 155.459, segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de Saúde.

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Governadores pedem foco na saúde nas decisões

Marta Watanabe

22/10/2020

 

 

Dirigentes do Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Maranhão e Alagoas criticam declarações de Bolsonaro

Os governadores do Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Maranhão e Alagoas reagiram ontem à manifestação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre as vacinas, sustentando que a decisão do governo sobre o assunto deve priorizar saúde e segurança e ficar acima de questões eleitorais.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), disse que a decisão sobre vacinas contra a covid-19 deve ser técnica e não política. “Temos instituições renomadas trabalhando sobre esse assunto, como a Fiocruz e o Instituto Butantan.” O que deve ser observado, segundo ele, é a condição de segurança, viabilidade técnica e também a agilidade para disponibilizar a vacina. “A população precisa de uma vacina segura o mais rápido possível.”

Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo, disse ter recebido com surpresa a informação de que não haverá compra de vacina do Instituto Butantan, de São Paulo. “Neste momento é importante salvar vidas e é preciso estarmos juntos. Questões ideológicas e eleitorais devem ser deixadas de lado.”

“O Instituto Butantan não pertence ao governo chinês. É patrimônio do povo brasileiro, fundado há mais de 100 anos, e merece respeito”, tuitou ontem o governador do Maranhão, Flávio Dino (PT). “Não queremos nova guerra na Federação. Mas com certeza os governadores irão ao Congresso Nacional e ao Judiciário para garantir o acesso da população a todas as vacinas que forem eficazes e seguras. Saúde é um bem maior do que disputas ideológicas ou eleitorais.”

Renan Calheiros Filho (MDB), governador de Alagoas, diz que, independentemente de onde for produzida, a vacina, se funcionar, deve ser ministrada à população. “Devemos sair de ideologia para ir ao pragmatismo”, defendeu. “Vacina não tem nacionalidade. Nunca perguntamos a nacionalidade do remédio que tomamos, queremos saber se funciona ou não.”

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Vacina para todos só em 2022, afirma líder do governo

Cristiane Agostine

22/10/2020

 

 

Ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros defende fim do isolamento social

Em meio ao embate entre o presidente Jair Bolsonaro e governadores sobre a compra da vacina contra o novo coronavírus, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), afirmou que dificilmente o Brasil vacinará toda a população antes de 2022 e indicou que o governo federal não deve manter o auxílio emergencial se a crise econômica devido à pandemia se estender.

Ex-ministro da Saúde, Barros disse que o Brasil não pode seguir os modelos de combate à covid-19 adotados por outros países e defendeu a retomada imediata das aulas e das atividades econômicas.

Ao participar de reunião com governadores e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na terça-feira, Barros disse o que o país “tem que enfrentar” o novo coronavírus e acabar com as atuais medidas de isolamento social em vigor.

“Por mais que as coisas deem certo e estão dando certo, teremos vacina para todos os brasileiros daqui a muito tempo, talvez em 2022. E não podemos ficar sustentando a economia até 2022 com recursos públicos. É isso o que eu penso e é o que presidente Bolsonaro pensa”, afirmou Barros, depois de citar um encontro com o presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira.

O ex-ministro minimizou a gravidade da covid-19 e disse que quem for contaminado pelo novo coronavírus pode se tratar “no excelente sistema público” do país. O Brasil registra mais de 155 mil mortes e 5,3 milhões de pessoas contaminadas.

“Vamos ter que achar uma solução para conseguir a imunidade de rebanho e encerrarmos a crise, para não termos repique como teve na Europa, porque não há plano de recuperação econômica sem saber se este episódio está encerrado”, afirmou o deputado, na reunião. “Deveríamos retomar as atividades, especialmente as escolas, e enfrentarmos o vírus. Já temos respiradores, medicamentos com eficácia comprovada, 50 mil postos de saúde. Não temos que copiar a solução de outros países, temos que adotar a nossa medida. E é a de enfrentar o problema, de a sociedade tocar sua vida”, disse o parlamentar, um dos cotados para assumir o Ministério da Saúde na atual gestão. “Assim teríamos o fim da crise e uma retomada econômica consistente.”

O encontro foi gravado e divulgado pela assessoria do governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Antes de o líder do governo falar no encontro, o ministro da Saúde havia dito aos governadores que o governo compraria 46 milhões de doses da vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo, contra o novo coronavírus, para iniciar a vacinação o quanto antes. Ontem, no entanto, Bolsonaro desautorizou Pazuelo e disse que o governo não comprará a vacina, que ele classificou como “vacina chinesa de João Doria”.

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Administração federal atua contra imunização, diz MP

Murillo Camarotto

22/10/2020

 

 

Procurador vê entraves injustificados a vacinas como a da chinesa Sinovac

O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) fez um alerta sobre a conduta do governo federal em relação ao programa de vacinação contra a covid-19. De acordo com parecer protocolado pelo procurador Lucas Furtado, a administração atua “em desfavor da ampla imunização da população” quando coloca entraves injustificados a vacinas como a da chinesa Sinovac, desenvolvida em parceria com o Instituto Butantan.

O documento foi apresentado na segunda-feira passada, antes, portanto, de o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciar a inclusão da vacina chinesa no programa nacional. A polêmica, contudo, voltou com força ontem, após o presidente Jair Bolsonaro contrariar seu ministro e dizer que o governo não vai comprar a imunização da Sinovac.

Na representação, o procurador pede que o TCU emita medida cautelar para obrigar o Ministério da Saúde a encaminhar todas as informações referentes ao programa de vacinação, com os critérios técnicos que estão sendo considerados para escolher esse ou aquele laboratório. Lucas Furtado também quer que o governo interrompa imediatamente a aquisição de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19.

“Considerando o fundado receio da postura governamental atuar em desfavor da ampla imunização da população, bem como a relevância da matéria - que está a tratar da vida de milhões de brasileiros -, entendo que o TCU deve atuar de imediato no acompanhamento das ações a cargo do Ministério da Saúde, sujeito, como todos os órgãos públicos no campo da gestão, ao controle externo em toda a sua amplitude”, afirmou Furtado.