Correio braziliense, n. 20948, 30/09/2020. Política, p. 2

 

Bolsonaro aos críticos: ajudem com sugestões

Rosana Hessel

Ingrid Soares 

30/09/2020

 

 

Em meio ao mau humor do mercado e de especialistas com a proposta de financiar o Renda Cidadã com recursos do Fundeb e de precatórios, o governo sinalizou que não pretende mudar de ideia. O primeiro a dar o tom foi o presidente da República, que enviou mensagem aos investidores e, mais uma vez, acusou governadores e prefeitos e rebateu a oposição. “Pessoal do mercado, não estou dando recado para vocês, (mas) se o Brasil for mal, todo mundo vai mal. Aquele ditado: estamos no mesmo barco é o mais claro que existe no momento. O Brasil é um só. Se começar a dar problema, todos sofrem”, afirmou Bolsonaro, ontem, a apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada. Ele ainda pediu para que os integrantes do mercado “ajudem com sugestões, não com críticas”. Segundo Bolsonaro, a previsão é de que, em janeiro de 2021, 20 milhões de pessoas fiquem “quase sem renda” com o fim do auxílio emergencial. O chefe do Executivo afirma, porém, que as alternativas elencadas pelo governo em busca da recuperação econômica vêm sofrendo “críticas monstruosas”, sem sugestões em contrapartida.

Nas redes sociais, Bolsonaro negou que o Renda Cidadã, programa que vai substituir o Bolsa Família, seja uma medida eleitoreira. O chefe do Planalto acrescentou que, na verdade, “está pensando em 2021”. “Temos milhões de brasileiros que perderam seus empregos ou rendas e deixarão de receber o auxílio emergencial a partir de janeiro. A política do ‘fique em casa que a economia a gente vê depois’ acabou e o ‘depois’ chegou”, escreveu.

O tom do Planalto reverberou no Congresso. Em entrevista ao Correio, o senador Marcio Bittar (MDB-AC) afirmou que, apesar das críticas sobre uso dos recursos dos precatórios, não vai mudar a proposta de financiamento do Renda Cidadã. “O texto irá como o combinado”, afirmou. Bittar pretende apresentar hoje a proposta e disse que inclui o Renda Cidadã no relatório da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial. Em relação às críticas do mercado e às ponderações de que a saída encontrada é inconstitucional, ele destacou que o governo está mais preocupado em socorrer as pessoas que vão ficar sem auxílio emergencial no ano que vem. “Estamos preocupados também com 10 milhões de brasileiros que precisarão do Estado mesmo a partir de janeiro”, destacou.

Para Bittar, a proposta de um limite de 2% na Receita Corrente Líquida (RCL) para o pagamento de precatório não é calote, mas uma forma de “definir uma prioridade nas despesas". “O Orçamento está muito enxuto e precisamos achar espaço para respeitar o teto de gastos sem criar novas despesas, e essa foi a única saída”, defendeu. Ele não revelou o valor do benefício do Renda Cidadã, que será definido pelo Executivo.

Líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) também reforçou, ontem, que o governo esgotou todas as possibilidades orçamentárias para financiar o Renda Cidadã (Leia ao lado a entrevista ao programa CB Poder, parceria do Correio e da TV Brasília). 

Reação negativa

Os mercados continuaram reagindo mal à proposta de Bittar e levantaram suspeitas de uma espécie de “pedalada” fiscal, medida inconstitucional que derrubou a presidente Dilma Rousseff em 2016. A Bolsa de Valores de São Paulo (B3) desabou 3,5% em dois pregões e encerrou em 93.580 pontos, ontem, refletindo o aumento da desconfiança no governo e sua capacidade de controlar a escalada da dívida pública que está encostando em 100% do Produto Interno Bruto (PIB), patamar insustentável para um país emergente, diante da ameaça de estouro do teto de gastos.

O economista-chefe da JF Trust, Eduardo Velho, reconheceu que a reação dos mercados refletiu o aumento dos riscos no país com a proposta usando precatórios para financiar o Renda Cidadã. “Essa medida pegou o mercado de surpresa, apesar de ser um remanejamento de despesa”, afirmou. “A situação é realmente muito delicada e o governo está no corner e precisa tomar medidas rápidas para evitar uma nova crise, mas não tem margem fiscal para isso”, destacou.

Apesar de analistas classificarem o adiamento no pagamento de precatórios como uma espécie de “pedalada”, o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira, é mais cauteloso. “Se for aprovada uma PEC criando esse mecanismo, passa a ser constitucionalmente previsto. Se não for por PEC, parece-me que será ilegal”, explicou.