O globo, n. 31795, 25/08/2020. Sociedade, p. 13

 

País ultrapassa a marca de 115 mil mortes pelo novo coronavírus

Daniel Gullino

Naira Trindade

Natália Portinari

Paula Ferreira

Renata Mariz

25/08/2020

 

 

Bolsonaro participou ontem do evento “Brasil vencendo a Covid', no qual voltou a defender a cloroquina; Estado brasileiro já gastou R$ 18 milhões em remédios sem eficácia comprovada

 No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 115 mil mortos por Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro participou de um evento — chamado de “Brasil vencendo a Covid” —, no Palácio do Planalto, para defender o uso precoce da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da doença. As drogas não têm eficácia comprovada cientificamente e foram retiradas em definitivo dos testes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O país soma, até agora, 115.451 mortes e 3.627.217 infectados pelo novo coronavírus, segundo o consórcio de veículos de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S.Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo.

O evento teve a participação de representantes de um grupo de médicos que defende o uso precoce desses medicamentos.

—Os senhores, a olongo de suas vidas, salvaram avida de muitas pessoas e, em momento ímpar, tiveram que decidi renão ficaram em cima do muro, porque pior que uma decisão mal tomada é uma indecisão. Então vocês salvaram sim, no meu entendimento, muitas milhares e milhares de vidas, pelo Brasil. E, se a hidroxicloroquina não tivesse sido politizada, muitas mais vidas poderiam ter sido salvas dessas 115 mil—afirmou o presidente.

Em 20 de maio, o Ministério da Saúde alterou a orientação sobre ou soda cloroquina e da hidroxicloroquina, incluindo a prescrição desses medicamentos desde a fase leve da doença.

COMPRIMIDOS EM ESTOQUE

Desde o início da pandemia, o Estado brasileiro gastou no mínimo R$ 18 milhões adquirindo ou produzindo remédios sem eficácia comprovada contra o coronavírus. Levantamento do GLOBO mostra que estados, cidades e a União compraram hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e azitromicina, sem comprovação científica de que esses remédios auxiliem no combate ao vírus.

Só o Ministério da Saúde distribuiu 5,2 milhõesde comprimidos de cloroquina a estados e municípios. A pasta informou um gasto de R$ 207 mil para adquirir 3 milhões de unidades do remédio produzido pela Fiocruz. Já o Exército, que tem laboratório próprio e repassa o produto para a pasta da Saúde fazer a distribuição, desembolsou mais R$ 1,1 milhão para produzir 3 milhões de cápsulas de cloroquina, quantidade suficiente para 18 anos, considerando o uso do medicamento no Brasil em anos anteriores.

A Força ainda tem em estoque 400 mil comprimidos, segundo dados do último dia 20. A pasta da Saúde tem mais 3 milhões de comprimidos armazenados: 2 milhões de unidades doadas pelos Estados Unidos e 1 milhão por uma multinacional farmacêutica. A apresentação do remédio estocado na Saúde é de 200 mg — o dobro da unidade usada no país, de 100 mg, o que tem inviabilizado o uso.

O levantamento do GLOBO mostra que oito estados tiveram despesas próprias com drogas sem eficácia comprovada. Mato Grosso do Sul, Pará, Tocantins e Acre adquiriram hidroxicloroquina. Já Pará, Tocantins, Roraima, Maranhão e Acre compraram azitromicina, droga que chegou a ser indicada como complementar à cloroquina em tratamentos experimentais, também sem evidências científicas. Dezenove estados responderam aos questionamentos da reportagem.

A soma incluiu também os gastos com ivermectina, remédio antiparasitário e vermífugo cujo uso se popularizou nos últimos meses contra a Covid-19, apesar de não haver comprovação de sua eficácia. Tocantins, Distrito Federal, Maranhão, Acre e Amazonas adquiram quantidades expressivas do remédio, com um gasto declarado de mais de R$ 80 mil aos cofres públicos.

Para o infectologista Julival Ribeiro, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o motivo desse tipo de gasto é a ausência de um protocolo padronizado imposto pelo governo federal de combate à doença — o governo orientou, inclusive, que hospitais usassem a cloroquina, mesmo sem haver estudos embasando essa decisão.

O Ministério da Saúde não respondeu sobre se considera um desperdício de dinheiro a produção de uma quantidade tão grande de cloroquina, nem sobre os custos com o armazenamento e a conservação dos remédios.