O globo, n. 31795, 25/08/2020. Sociedade, p. 12

 

Covid-19, duas vezes

Ana Letícia Leão

Rafael Garcia

25/08/2020

 

 

Cientistas de Hong Kong relatam lº caso confirmado de reinfecção

 Um grupo de cientistas da Universidade de Hong Kong relatou ontem ter identificado o primeiro caso certo de reinfecção por Covid-19: um homem de 33 anos que contraiu a doença duas vezes, com quatro meses de intervalo. Foi a primeira suspeita de contágio reincidente a ser validada por análise genética, clínica e epidemiológica.

O caso confirmado ocorreu num momento em que mais suspeitas de reinfecção surgem mundo afora. Em São Paulo, há pelo menos 15 ocorrências do tipo sendo investigadas.

Os cientistas chineses descreveram primeiro o caso confirmado de contágio após cura em um artigo submetido à revista Clinical Infectious Diseases, ainda não publicado. Um fragmento do trabalho foi vazado pelo jornal South China Morning Post.

“Nossas descobertas sugerem que o Sars-CoV-2 pode persistir em humanos, como no caso dos outros coronavírus humanos associados ao resfriado comum, mesmo em pacientes que tenham adquirido imunidade via infecção natural ou via vacinação”, escrevem os pesquisadores, liderados por Kwok-Yong Yuen. “É improvável que a imunidade de rebanho possa eliminar o SarsCoV-2, mas é possível que infecções subsequentes sejam mais leves que a primeira, como neste caso.”

Sequenciando o genoma do patógeno, os pesquisadores demonstraram que o homem havia sido infectado por duas linhagens diferentes do vírus, uma predominante nos EUA e na Inglaterra, outra na Suíça e na Inglaterra. A evolução clínica do paciente também aponta para a ocorrência de dois episódios separados, e seu histórico de viagem reforça a tese. No segundo episódio de contágio, o paciente estava sem sintomas, e o diagnóstico foi feito em uma triagem no aeroporto de Hong Kong, quando ele retornava da Espanha.

‘SEM CONCLUSÕES’

A epidemiologista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, disse que é importante documentar casos como o de Hong Kong, mas sugeriu “não antecipar quaisquer conclusões” sobre reinfecções.

Ela lembrou que é necessário ampliar os estudos sobre a qualidade e a durabilidade da resposta imune de pacientes recuperados da Covid-19. Afirmou, ainda, que a maior parte das 24 milhões de pessoas que testaram positivo para o SarsCoV-2 no mundo desenvolveram anticorpos, e suspeitas de reinfecção são raras.

O estudo do grupo de Hong Kong, porém, atiça o debate sobre a chance de imunidade coletiva proteger populações, o tempo de proteção oferecido pelas vacinas em teste e a segurança para liberar da quarentena as pessoas que já se recuperaram de uma infecção.

“Vacinas provavelmente não serão capazes de proporcionar proteção vitalícia contra a Covid-19”, diz o artigo. “A vacinação deve ser considerada para pessoas com histórico conhecido de Covid-19. Pacientes com infecção prévia de Covid-19 devem também obedecer as medidas de controle epidemiológico, como o uso universal de máscara e o distanciamento social.”

Outros estudos especulando sobre casos de reinfecção por coronavírus já haviam sido divulgados antes, mas cientistas ainda questionavam se os episódios descritos poderiam ser “recaídas” causadas pela presença latente de vírus.

Uma das perguntas não respondidas pelo grupo de Hong Kong é quão comum a reinfecção deve ser e se ela tende a ocorrer com mais frequência à medida que a pandemia avança.

SUSPEITA EM SÃO PAULO

A discussão sobre a suspeita de reinfecção em pacientes paulistas cresceu há duas semanas, com o relato de uma técnica de enfermagem de Ribeirão Preto. Ela apresentou os sintomas da Covid-19 em maio e testou positivo para o vírus nove dias após adoecer. No 10° dia, os sintomas sumiram.

No mês seguinte, em 27 de junho, 38 dias depois, a paciente voltou a apresentar sintomas. O novo teste PCR deu positivo novamente.

Segundo Fernando Bellissimo, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e coordenador da pesquisa sobre reinfecção na universidade, o estudo sobre o caso da técnica de enfermagem foi finalizado e enviado ontem para publicação em uma revista científica de circulação internacional.

O estudo de Ribeirão não conseguiu sequenciamentos genéticos de amostras distintas do vírus, e se baseia em três outros pilares:

—Pilar epidemiológico, mostrando que a paciente teve contato com pessoas que testaram positivo para Covid; pilar clínico, que significa ter sintomas típicos da doença no intervalo compatível com o período de incubação do vírus; e o pilar dos exames, já que o PCR e a sorologia deram positivo —diz Bellissimo.

Para Nancy Bellei, infectologista da Unifesp que atua no teste da vacina de Oxford contra o coronavírus, a confirmação de um caso de reinfecção não invalida os atuais estudos em andamento sobre vacinas.

— Reinfecção era algo esperado, considerando o padrão do vírus respiratório. Isso não diminui o impacto que a vacina possa ter em termos de saúde pública — afirma. — O que a gente não sabe, e continua sem saber, é o papel que essa vacina terá a longo prazo e quanto tempo deve durar no organismo.