O globo, n. 31794, 24/08/2020. Sociedade, p. 7

 

Sem licitação

Renato Grandelle

24/08/2020

 

 

Defesa dará R$ 145 milhões a satélite que faz o mesmo trabalho do Inpe

CHRISTIAN BRAGADevastação. Fogo na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho: o monitoramento da devastação da floresta já é realizado pelo Inpe com alta tecnologia

 Enquanto a Amazônia queima e órgãos ambientais murcham com a falta de verbas, o Ministério da Defesa empenhou pouco mais de R$ 145,3 milhões para a compra de um microssatélite que fará o monitoramento da devastação da floresta. A função já é exercida —e, segundo especialistas, com tecnologia tão ou mais desenvolvida — por outro órgão do governo federal, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não há informação sobre licitação.

O custo do novo microssatélite é 48 vezes maior do que a verba prevista no orçamento deste ano (R$ 3,03 milhões) para projetos de monitoramento da terra e de risco de incêndios. O conjunto abrange o Prodes e o Deter, que emitem boletins sobre o desmatamento da Amazônia, e o Programa Queimadas, responsável por detectar focos de calor em todo o país.

O GLOBO teve acesso à nota de empenho da verba, realizado no dia 30 de junho em favor do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), subordinado ao Ministério da Defesa. O microssatélite será custeado por recursos recuperados pela Operação Lava-Jato — do R$ 1,06 bilhão destinados a ações ambientais, R$ 530 milhões couberam à pasta.

A nota de empenho aponta que a verba do microssatélite ainda não foi liquidada. Ou seja, o recurso está destinado e reservado para tal fim, mas ainda não houve a entrega do bem e o pagamento definitivo. Ver uma movimentação financeira tão grande ligada à compra de um material sem definir sua licitação é considerado atípico. Significa que o dinheiro está “trancado” no órgão —neste caso, o Censipam. Especialistas avaliam que esta não seria a conduta desejada, considerando a necessidade emergencial de verbas para controlar o desmatamento e as queimadas na Amazônia.

— De fato, é um caso estranho. Haverá uma licitação seguindo a legislação? Ou simplesmente um fornecedor será contratado, sem qualquer competição entre eventuais interessados? — questiona o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas.

INSTITUTO ENFRAQUECIDO

Ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão alerta que a aquisição de um microssatélite pela Defesa pode enfraquecer o instituto:

—Sempre houve um embate sobre o controle do programa espacial, onde o Inpe desenvolve satélites e a Força Aérea cuida dos foguetes, mas agora ela decidiu lançar uma proposta orçamentária para comprar o seu próprio satélite. Isso é preocupante para o Inpe, significa uma perda de protagonismo —alerta.

O físico foi exonerado no ano passado, ao rebater as acusações do presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que as métricas de desmatamento do Inpe “não coincidem com a verdade”. Galvão foi eleito um dos dez cientistas de 2019 pela revista “Nature”.

Em nota enviada ao GLOBO, o Ministério da Defesa afirma que o Censipam desenvolve desde 2016 o Projeto Amazônia SAR, com o objetivo de implantar o Sistema Integrado de Alerta do Desmatamento por Radar Orbital (SipamSAR), cuja tecnologia é capaz de enxergar o terreno mesmo que ele esteja sob nuvens. A pasta destaca que a Amazônia registra fortes chuvas durante oito meses do ano.

“A partir da operação do seu primeiro satélite SAR, o Estado brasileiro, incluindo órgãos como o Ibama e o Inpe, terá acesso a imagens de radar, que não sofrem interferência de nuvens, e poderá realizar um melhor monitoramento territorial do país”, diz o comunicado, acrescentando que a tecnologia também pode detectar outros crimes ambientais, como garimpo ilegal e pistas de pouso clandestinas.

Gilberto Câmara, secretário executivo do Group on Earth Observations, ligado à Organização Meteorológica Mundial, discorda da análise do ministério. O cientista da computação avaliou o preço e o tamanho do equipamento, comparando-os depois a outros satélites usados no monitoramento de florestas. E concluiu que o SAR não terá a estrutura necessária para fazer um trabalho diferenciado daquele já realizado pelo Inpe:

—Seu tamanho e orçamento condizem com um satélite SAR de banda X, que é o tipo mais simples, e cujas imagens não são adequadas para um sistema operacional de monitoramento de florestas tropicais —explica. —Um satélite pequeno tem variações na órbita, causadas por fatores como o vento solar e a própria gravidade, eédifícilgarant ir que ele volte ao seu percurso original, porque isso demanda um reparo por giroscópios, que são sensores grandes demais para esses satélites. Então, eles não têm órbita fixa, e sua possibilidade de chegara o ponto original é limitada.

‘CLOROQUINA DA AMAZÔNIA’

Câmara acrescenta que o microssatélite ainda terá gastos adicionais, como sua operação elançamento. Além disso, há satélites rad armais sofisticados doque odo Censipam,c omo o europeu Sent in el-1(band aC) eoj apo nês Alos-2 (banda L), cujos dados estão disponíveis livremente.

—Não há evidênciarelatório técnico ou artigo científico que comprove que exista sequer um projeto viável de um sistema de monitoramento d oCensipam.Éa cloroquina da Amazônia — ressalta.

— Os militares estão desesperados para ter o controle da narrativa sobre o desmatamento do país. Mas eles jamais teriam a credibilidade para fazer um projeto alternativo ao Prodes e ao Deter.

O cientista dirigiu o Inpe entre 2005 e 2012, no governo Lula. Câmara revela que autoridades o orientaram a rever a medição do desmatamento, porque os números estariam elevados demais, mas, apoiado pela então ministrado Meio Ambiente, Marina Silva, recusou-se a cumprira ordem.

Um servidor do governo federal da área, que pediu para não ser identificado, avalia que a Defesa empregaria melhor averbas e dobrasse a área analisada pelo sistema Deter Intenso. Hoje, ela corresponde a 10% da floresta, região que concentra 60% do desmatamento amazônico.

—O Deter Intenso usa imagens coletadas diariamente por cinco satélites. Já o resto da floresta é visto pelo Deter, que obtém imagens a cada dois dias vindas de dois satélites —afirma. —O governo indica que comprará um tipo de satélite que é mais usado em mineração e na identificação de alvos militares.

Outro investimento possível, e ainda mais urgente, deve ser nas “ações de ponta”, diz o servidor.

— Não adianta ter uma profusão de imagens sem ações no campo para coibir os crimes ambientais. O governo insiste que o problema é a falta de dados. Quantos dos milhares de alertas foram fiscalizados? Infelizmente, os militares veem o Inpe como uma ameaça.