Correio braziliense, n. 20938, 20/09/2020. Mundo, p. 13

 

Mulher em todos os sentidos

20/09/2020

 

 

Mesmo antes de ingressar na Suprema Corte dos Estados Unidos, Ruth Bader Ginsburg defendia a causa das mulheres, mas a morte dela ameaça uma das principais conquistas feministas: o direito ao aborto. Assim que a notícia do falecimento aos 87 anos foi anunciada, na sexta-feira, grupos de direitos das mulheres lamentaram a perda de “uma gigante da lei” e “fonte de inspiração para milhões de mulheres”, enquanto alarmes soaram.

“Esta noite, honramos o legado, mas, amanhã, teremos de lutar para preservar os ideais que ela defendeu ao longo da vida”, advertiu Alexis McGill Johnson, que preside a poderosa organização Planned Parenthood.

“Ruth Bader Ginsburg foi um ícone, uma pioneira, uma heroína, uma lenda. O exemplo dela deve nos inspirar nos dias difíceis que virão”, disse Shaunna Thomas, diretora do grupo feminista UltraViolet.

Os motivos de tanta preocupação? O perfil de quem a sucederá. O presidente republicano Donald Trump, que tem autoridade constitucional para nomear juízes do Supremo Tribunal, e que nomeou dois magistrados, disse ontem que recorrerá a esse poder “sem demora”, certamente antes das eleições de 3 de novembro.

Muitos legisladores republicanos pedem que Trump aja e, para atender os eleitores da direita religiosa, ele publicou uma lista de candidatos em potencial altamente conservadores, muitos deles abertamente hostis à interrupção voluntária da gravidez.

O senador Tom Cotton, que figura na lista, não esconde as intenções: “É hora de acabar com Roe v. Wade”, tuitou em referência à decisão do tribunal que, em 1973, legalizou o aborto nos Estados Unidos.

Se um deles substituir Ginsburg, o tribunal superior poderia validar as inúmeras restrições ao aborto adotadas pelos estados republicanos, que ela, uma defensora ferrenha do direito de escolha da mulher, conseguiu evitar com o voto que tinha.

Ginsburg foi a segunda mulher a entrar na Suprema Corte, quando o presidente Bill Clinton a nomeou em 1993. A advogada passou a lutar pela causa das mulheres depois que a mãe foi impedida de estudar e ela mesma ter sido rejeitada por escritórios de Nova York, quando se formou na prestigiosa Universidade de Columbia, em 1959.

“Eu tinha três fatos contra mim. Um, eu era judia. Dois, eu era uma mulher. Mas, o mais grave, eu era mãe de uma menina de quatro anos”, afirmou.

Em seguida, lutou contra as leis que, na época, autorizavam a discriminação “em razão do sexo” em termos de salário, benefícios sociais e contratação.

Lutadora

Entre 1972 e 1978, foi advogada da poderosa associação de direitos civis ACLU. Em 1975, chegou a defender um viúvo contra uma lei que reservava assistência à creche para mulheres, episódio que inspirou o filme Uma Mulher Excepcional.

No Supremo Tribunal Federal, lutou pela igualdade das minorias sexuais e outras causas progressistas, como a defesa dos migrantes e do meio ambiente e foi comparada ao primeiro juiz negro da Corte, Thurgood Marshall, figura da luta contra a segregação racial.

A notícia da morte levou muitas jovens às escadas do tribunal. A senadora democrata Kamala Harris, a primeira mulher negra a concorrer à vice-presidência dos Estados Unidos, também falou, ontem, diante da construção neoclássica em Washington. Ginsburg “foi um dos meus ícones, uma pioneira, uma lutadora”, disse. “Ela foi mulher em todos os sentidos da palavra.”

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A perda de um ícone progressista 

20/09/2020

 

 

Ruth Bader Ginsburg era baixa em estatura, mas a influência era enorme, tanto como uma importante defensora dos direitos das mulheres no início da carreira, quanto como uma força progressista na Suprema Corte dos Estados Unidos.

Usando inconfundíveis colares e estilizadas gravatas-borboleta, esta mulher nascida no Brooklyn amante de ópera era a decana da Corte e “líder” da coalizão de esquerda em um tribunal de maioria conservadora. Nunca hesitou em dizer o que pensava e a contundente frase “Eu discordo” tornou-se parte do improvável legado como ícone da cultura pop.

O rosto emoldurado por óculos de aro escuro adorna camisetas, canecas e roupinhas de bebê. A vida dela foi retratada em dois filmes em 2018: o documentário RBG e o drama On the Basis of Sex. “Por mais sombrias que as coisas pareçam, vi muitas mudanças em minha vida”, disse Ginsburg em uma conferência na Carolina do Norte, em setembro de 2019. “Oportunidades abriram-se para pessoas de qualquer raça, religião e, em última instância, gênero”, apontou.

Em uma frágil condição de saúde durante anos, esta defensora da causa das mulheres, das minorias e do meio ambiente foi internada duas vezes neste semestre.

O substituto de Ginsburg poderá ser indicado – para consideração do Senado – pelo presidente Donald Trump, um homem que ela criticou pelo “ego”, cujo impacto no tribunal ela disse “nem mesmo querer contemplar”.

Durante o mandato, Trump nomeou dois juízes conservadores: Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh. De acordo com a rádio NPR, Ginsburg confiou o último testamento à neta Clara Spera. “Meu maior desejo é não ser substituída até que um novo presidente seja empossado”, ela teria dito alguns dias antes da morte.