Correio braziliense, n. 20935, 17/09/2020. Mundo, p. 12

 

Entrevista - Marta Valiñas

17/09/2020

 

 

Executivo deu ordens e descartou punição

Durante o último ano, a jurista portuguesa Marta Valiñas, 40 anos, chefiou 13 especialistas de direitos humanos da Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela. Impedida de entrar em território venezuelano, a equipe precisou trabalhar de forma remota. Depois de analisarem dezenas de materiais audiovisuais e de entrevistar várias vítimas, Valiñas admitiu ao Correio, por telefone, que autoridades de alto escalão da Venezuela chegaram a ordenar crimes contra a humanidade e garantiram a não punição por essas violações. De acordo com ela, os atos de tortura e de execções extrajudiciais cometidos pelos serviços de inteligência e pelas forças de segurança são “particularmente chocantes”.

Em que período a missão liderada pela senhora fez o levantamento de violações dos direitos humanos na Venezuela?

O mandato do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que criou essa Missão Internacional Independente de determinação dos fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela, foi aprovado em setembro de 2019. Nós tivemos um ano de trabalho, mas isso traduziu-se em um período menor para a realização das investigações. Tivemos de criar uma equipe e começar o trabalho do zero. Isso quer dizer que nossas investigações foram mais intensas nos últimos meses, entre fevereiro e agosto de 2020.

Quantas pessoas estiveram envolvidas nesse trabalho e como ele se desenvolveu?

A nossa equipe estava constituída por 13 profissionais de direitos humanos, incluindo investigadores, uma especialista em gênero e violência sexual, um especialista em direito penal internacional, um em temas militares e outro em análise digital forense, além de uma pessoa responsável pela segurança das testemunhas. Infelizmente, não pudemos realizar atividades na Venezuela. Não pudemos visitar o país, tal como queríamos. Pedimos ao governo venezuelano que aceitasse nossa ida ao país para realizar as investigações. Até hoje, não obtivemos nenhuma resposta do governo venezuelano ao nosso pedido. Por isso, não pudemos ingressar no país. Também devido a outras restrições de viagens causadas pela pandemia da covid-19, tivemos de ajustar um pouco nossa metodologia de trabalho. Graças à tecnologia, foi possível, via remota, realizar várias entrevistas com vítimas e com uma série de outras fontes de informação que vivem na Venezuela e em outros países. Também foi muito importante poder contar com um membro de nossa equipe que é especialista em análise de informação digital. Nós analisamos dezenas de vídeos e de material audiovisual disponível ao público na internet, fizemos a geolocalização e os utilizamos para nossas investigações. Também tivemos acesso a declarações de membros do governo e de autoridades venezuelanas, além de uma série de documentos confidenciais e outros que fazem parte de  processos judiciais em casos importantes para nós.

O fato de o regime ter impedido a presença dos investigadores pode ser visto como um atestado de culpa?

Eu não sei quais são as verdadeiras motivações para o governo venezuelano não permitir nossa entrada no país. É claro que ficamos muito desiludidos com essa falta de resposta absoluta às nossas comunicações. Até porque a Venezuela é um dos membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e nós temos um mandato que nos foi dado por ele.

Quais foram as principais conclusões da investigação?

As conclusões às quais chegamos, depois desses meses de investigações, foram de que, efetivamente, ocorreram várias graves violações dos direitos humanos durante o período examinado, entre 2014 e 2020. Elas incluem execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, torturas e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, incluindo violência sexual. Nós concluímos que esses abusos dos direitos humanos constituem crimes, não só de acordo com a Constituição venezuelana, mas com as normas do direito internacional. Eles foram perpetrados por membros das forças de segurança do Estado, as Forças Armadas Bolivarianas e a Polícia Nacional Bolivariana (PNB), incluindo o corpo de investigação criminal. Dentro da PNB, as Forças de Ação Especial. Os serviços de inteligência civil e militar estiveram envolvidos.

Quem deve ser responsabilizado por essas violações?

Não só os autores dessas violações têm responsabilidade por elas, mas também aqueles que tinham poder de  decisão nessas entidades — tanto as forças de segurança do Estado quanto os serviços de inteligência — e membros do Executivo, como o presidente (Nicolás Maduro) e os ministros. Temos a informação de que eles tinham conhecimento das violações e continuaram a adotar planos e a fornecer materiais. Em alguns casos, deram ordens e descartaram a punição. Concluímos que autoridades de alto escalão e entidades estiveram envolvidos e contribuíram com os crimes.

Com base nas conclusões dessa investigação, Maduro é passível de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional?

Temos motivos razoáveis para crer que Maduro e os ministros tiveram uma contribuição significativa para esses crimes. Em alguns casos, deram ordens. Também dizemos no relatório que não somos um organismo judicial. Nosso processo de investigação não é judicial. Cabe às autoridades competentes, seja a nível nacional, seja a nível internacional, analisar as investigações e determinar responsabilidades penais individuais.

Quais foram os crimes que mais chocaram a missão?

Entre os quatro tipos de violações que encontramos, eu diria que todos foram bastante chocantes. Os atos de tortura, cometidos sob custódia pelos serviços de inteligência, são particularmente chocantes. Eles foram cometidos contra indivíduos vistos como opositores do governo e contra militares envolvidos em rebeliões e em atentados contra o Estado, além de alguns dos manifestantes. São atos de uma violência muito pronunciada, inclusive de violência sexual. As execuções extrajudiciais também são particularmente chocantes. A informação de que dispomos indica que as forças de segurança não tentaram deter as pessoas, mas deliberadamente, cometeram execuções contra pessoas que viam como criminosas. Eles o fizeram de forma que a vítima ficava desprovida de defesa e retiraram familiares das casas dessas pessoas, para que não testemunhassem o que ocorreria. (RC)