Correio braziliense, n. 20935, 17/09/2020. Mundo, p. 12

 

ONU liga Maduro a torturas e exceções

Rodrigo Craveiro 

17/09/2020

 

 

Execuções extrajudiciais e torturas sistemáticas, desaparecimentos forçados e detenções arbitrárias. De acordo com a Missão Internacional Independente de Determinação dos Fatos das Nações Unidas sobre a República Bolivariana da Venezuela, o regime do presidente Nicolás Maduro deve ser responsabilizado por esses crimes. Depois de investigar 223 casos e revisar outras 2.891 denúncias de violações dos direitos humanos, a missão produziu um relatório de 411 páginas que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU no próximo dia 23. A equipe de especialistas, chefiada pela jurista portuguesa Marta Valiñas (leia entrevista), concluiu que o governo de Maduro e os agentes do Estado cometeram “violações flagrantes” nos últimos seis anos. Segundo o dossiê, elas foram “altamente coordenadas com as políticas de Estado” e “configuram-se como crimes contra a humanidade”. “O presidente Maduro e os ministros do Interior e da Defesa estavam cientes dos crimes. Eles deram ordens, coordenaram atividades e forneceram recursos”, afirma o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

O regime de Maduro desqualificou as acusações. “Um relatório repleto de falsidades, preparado de forma remota, sem qualquer rigor metodológico, por uma missão-fantasma dirigida contra a Venezuela e controlada por governos subordinados a Washington, ilustra a prática perversa de fazer política com os direitos humanos, e não política dos direitos humanos”, reagiu, em seu perfil no Twitter, o ministro das Relações Exteriores venezuelano, Jorge Arreaza. “Desde 2 de dezembro de 2019, temos afirmado que não reconhecemos nenhum mecanismo politizado e inquisidor, criado com fins ideológicos por países com péssimos históricos de direitos humanos, para agredir a Venezuela e tratar de prejudicar a relação com o Escritório da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU (Michelle Bachelet)”, acrescentou o ministro. Em julho, a própria Bachelet criticou o regime de Caracas, ao divulgar relatório com denúncias de “detenções arbitrárias, violações às garantias ao devido processo legal e casos de tortura e desaparecimentos forçados”.

Resposta

Por telefone, Marta Valiñas disse ao Correio que, ante as declarações de Arreaza, mantém tudo o que está documentado no relatório da missão. “Nele, explicamos a metodologia seguida, a qual está de acordo com as práticas seguidas por outras missões de investigações, em que temos plena confiança. Somos uma missão de investigação criada pelo Conselho de Direitos Humanos. Somos independentes e, portanto, refuto as afirmações feitas pelo ministro Arreaza”, comentou.

A jurista disse acreditar que o relatório será bem recebido pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, ao qual será apresentado na próxima quarta-feira, e pela comunidade internacional. “O que mais queremos é que o governo venezuelano leia nosso relatório e aceite nossas recomendações como uma proposta sobre o que precisa ser feito, a fim de cessar as violações dos direitos humanos, garantir a responsabilização dos autores e dar justiça às vítimas.”

Valiñas e sua equipe debruçaram-se sobre 16 casos de operações das forças de segurança que resultaram em 53 execuções extrajudiciais. Também revisaram 2.552 incidentes envolvendo 5.094 assassinatos cometidos pela Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e pelas Forças Armadas Bolivarianas, ainda que nem todas fossem necessariamente arbitrárias. A missão designada pela ONU descobriu que o Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas da Venezuela (CICP) e das Forças de Ação Especial da PNB foram responsáveis por 59% dos asssassinatos cometidos pelo Estado desde 2014.

As denúncias de tortura envolveram o Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) e incluiram asfixiamento, espancamento, choques elétricos, cortes e mutilações, ameaças de morte e tortura psicológica. Homens e mulheres também foram submetidos a violência sexual e a choques nos genitais. Ex-preso de consciência, Villca Fernández, 39 anos, sentiu na pele os crimes atribuídos a Maduro. Preso entre janeiro de 2016 e junho de 2018 no Helicoide, o centro de detenção mantido pelo Sebin, ele contou ao Correio que sofreu torturas físicas e psicológicas. “Fui muito golpeado por 15 funcionários do Sebin. Meu braço esquerdo foi algemado em uma grade, onde fiquei ali, pendurado por cerca de um mês em um corredor escuro e cheio de ratos, insetos e vermes. Também isolaram-me durante meses em uma solitária, sem direito a sol, a água e a comida”, relatou. “Testemunhei torturas a outros presos, com correntes, pedaços de madeira e bombas de gases lacrimogêneo contra a cabeça.”

Depois de ser capturado em 19 de fevereiro de 2015, acusado de conspirar contra Maduro, e de fugir para Madri, em 18 de novembro de 2017, o ex-prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, saudou o relatório da missão da ONU. “Como vítima dessas arbitrariedades, sinto satisfação em saber que é possível fazer justiça. Não tenho nenhum ânimo de vingança, mas uma inquebrantável determinação de lutar para que se faça justiça”, disse ao Correio. “Milhares de venezuelanos estão sob a terra, vítimas da tortura e da violência ordenada por Maduro. Esperamos que a Corte Penal Internacional aplique as sanções correspondentes. Que Maduro e sua camarilha paguem pelos crimes cometidos”, desabafou.