O globo, n. 31793, 23/08/2020. Sociedade, p. 14

 

Grávida aos dez anos

Maiá Menezes

23/08/2020

 

 

No quintal, castigado pela seca, uma boneca esquecida lembra o passado que Marcelina Machado de Oliveira, 33 anos, não viveu. Na mesma casa em Sapucaia, no Sul do estado do Rio, em que morava quando foi estuprada, aos 10 anos, Marcelina, hoje mãe de quatro filhos, nubla o olhar ao lembrar dos nove meses, há 22 anos, em que enfrentou, sem entender, a gravidez de Luciano, seu mais velho. A então menina teve o aborto autorizado pelo juiz Luiz Olimpio Cardoso, que atua na comarca até hoje, mas seus pais optaram pela não interrupção da gravidez. Foi abrigada em um lar católico, em Jacareí, interior de São Paulo. Lá fez o parto, em 13 de maio de 1998. Aos 11 anos.

— Eu não desejo que ninguém passe pelo que eu passei. Era muito difícil. Depois de três meses do estupro, fiquei muito enjoada. O médico da cidade me disse que eu estava grávida. Aquilo me mudou para sempre. Nunca mais brinquei — diz Marcelina, cercada por Letícia e Iara, de 13 e 9 anos, também suas filhas. Fora o enjoo que sentiu, ela não dá mais detalhes da gestação. Questionada, faz silêncio, como se fosse uma memória difícil demais de alcançar. Desde o crime, o município criou uma estrutura para receber denúncias de abuso. No abrigo criado para proteger as crianças, há dez, entre 2 e 17 anos. Oito delas abusadas sexualmente por parentes. A movimentação em torno do caso de Marcelina era semelhante à que foi despertada neste mês pelo aborto da menina de 10 anos que engravidou depois de ser estuprada —o suspeito é seu tio. — Havia um batalhão de gente na porta do fórum naquele dezembro de 1997 — lembra Olimpio Cardoso.

— Não sou contra nema favor do aborto. Eu não sou mulher, sou homem, equem deve decidi ré a mulher. Autorizei o aborto, mas de fato que mau torizaéa lei. Amenina não tinha ideia doque estava acontecendo. Consegui uma ambulância, ela foi para o Rio, mas um padre veio de Santos, fez a cabeça, e os pais desistiram. Dentro da Igreja Católica, há visões divergentes sobre a interrupção voluntária da gravidez. Além da corrente Pró-Vida, há um grupo crescente de mulheres católicas que atuam pelo cumprimento do direi toque alei define.

—Se agente considera como direito o aborto nos casos de abuso ou estupro, não há por que fazer discussão religiosa  sobre isso. Enxergar uma criança em uma situação dessa como assassina é não entender o tamanho da tragédia — afirma Regina Jurkewicz, da equipe das Católicas pelo Direito de Decidir.

O juiz se preocupa com o que chama de naturalização do absurdo. Na avaliação do magistrado, o quadro de abuso permanece o mesmo. Marcelina e a mãe tinham dois medos: de a então menina morrer no aborto, mesmo feito legalmente e com acompanhamento médico, ou de morrer no parto.

— Conversávamos muito com um padre daqui. Depois um grupo de católicas convenceu meus pais anão me deixarem fazer o aborto. O criminoso e pai de Luciano nunca foi encontrado.

Marcelina conta que era um trabalhador mais velho, que prestava serviço nas plantações de cana da região. Os pais não denunciaram o estupro. Na entrevista ao GLOBO, ela apontou o lugar do crime. Ao lado da janela do quarto onde costumava brincar. Luciano Machado, 22 anos, trabalha em um abatedouro de frangos, em uma cidade vizinha, em São José do Vale do Rio Preto. A mãe ligou para ele durante a entrevista e decidiu seguir ao seu encontro, na saída do trabalho. Marcelina reafirmava a toda hora o amor pelos filhos. Tímido, com olhar baixo, ele conta que estudou até o quinto ano e “se juntou” à sua companheira, de 41 anos, no ano passado. Tem um olhar triste, e explica a razão na primeira palavra que pronuncia na conversa com O GLOBO. A mãe se afasta e chora:

—Agente se sente culpado. Saber que nasceu de um crime, de um estupro. Eu já perguntei muito sobre o meu pai. Minha mãe começou aos poucos a me contar tudo quando eu tinha dez anos. Fico pensando no quanto ela sofreu. Queria muito saber por que ele fez isso —diz Luciano. Ele ainda lembra ter se sentido “triste e caído” ao saber de sua origem: — Muita gente até hoje diz que era para eu ter sido jogado no lixo. Sei que eram duas crianças, uma cuidando da outra. Para sua mãe, “é uma história difícil”.

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Pandemia torna crianças mais expostas a violência

23/08/2020

 

 

Para especialistas, confinamento aumenta a vulnerabilidade das vítimas e as afasta de espaços de denúncias, como escolas

 Medida de contenção da Covid-19, o confinamento domiciliar deixou crianças e adolescentes mais vulneráveis à violência, apontam especialistas. Para eles, o isolamento aumentou a exposição das vítimas aos agressores, na maioria das vezes moradores da mesma casa. Além disso, a suspensão das aulas e a limitação no funcionamento de espaços públicos durante a pandemia restringiram os espaços mais usuais de denúncia. —Experiências de crises sanitárias que envolvem isolamento social sempre trazem o risco de aumento da violência contra crianças e adolescentes. Quando falamos nesse tema, e especificamente sobre abuso sexual, a maior parte dos agressores está dentro do núcleo familiar ou em grupos próximos — diz a defensora pública Ana Carolina Schwan, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo.

A ameaça não se expressa no número de denúncias, mas na percepção de que a quedano acessoa delegacias, educadores, redes de proteção e órgãos públicos se reflete em um abuso silencioso, mas nem por isso inexistente. Éa exacerbação da sub notificação que sempre rondou os casos de violência sexual acrianças e adolescentes no país.

—Nesse período, acriança está longe de sua rede de proteção e confiança. E o grande desafio para os órgãos que lidam com o tema é conseguir estar presente nesse momento —afirma Schwan. Segundo informações do Disque 100, um dos principais canais de proteção acrianças e adolescentes com foco em violência sexual, houve ligeira queda nas denúncias no início da quarentena. De 1.408 em fevereiro deste ano, caíram para 1.402 em março, e 1.162 em abril. Isso não quer dizer que os crimes diminuíram ou deixaram de acontecer.

— Ao contrário. É preocupante porque indica que a subnotificação pode estar muito maior do que sempre foi —diz a defensora pública. — Em períodos como este não é comum explodirem as denúncias, até porque a vítima está presa com o agressor. Sair desse contexto e conseguir denunciar é difícil, ainda mais para uma criança. Em São Paulo, 45% dos atendimentos no principal serviço de atenção às vítimas de violência sexual, o Hospital Pérola Byington, referem-se a vítimas infantis, com até 11 anos. Entre janeiro e junho deste ano, 728 dos 1.600 atendimentos foram para pacientes nessa faixa etária. No primeiro semestre deste ano, o hospital realizou 275 procedimentos de interrupção de gestações decorrentes de estupro, situação prevista na lei. No ano passado, foram 190 abortos no mesmo período.

Já as denúncias de estupro ou tentativa contra menores e maiores de idade de janeiro a junho deste ano se mantiveram estáveis ou diminuíram em relação a 2019, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

—A gestação da menina de 10 anos( do ES) tinha a duração dessa pandemia. É um caso que ilustra algo que já conhecemos:a escola protege as crianças e os adolescentes. Quando estão fora do ambiente escolar, a quem vão pedir socorro, se estão impedidas em casa? São crianças que estão abandonadas à própria sorte—diz a psicóloga Daniela Pedroso, integrante do Grupo de Estudos de Aborto (GEA) eque trabalha há mais de 20 anos em casos de violência sexual em São Paulo. A melhor forma de quebrar o ciclo de abuso sé ames made antes da pandemia: as denúncias, que podem levar às punições. E ampliar os canais de divulgação e conscientização focados em crianças e adolescentes, sugerem especialistas.