O globo, n. 31793, 23/08/2020. País, p. 12

 

“Caixa-preta" da Alerj, auxílio-alimentação tem gasto recorde

Juliana Castro

23/08/2020

 

 

Benefício é pago por fora do contracheque e não há prestação de contas; Queiroz e familiares de miliciano receberam verbas

 No centro de escândalos recentes, com deputados estaduais presos e gabinetes na mira de investigações sobre a “rachadinha”, a Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) ainda mantém uma caixa-preta: o auxílio-alimentação. Os gastos com o benefício dispararam nos últimos anos, com crescimento de 91% entre 2014 e 2019. O auxílio-alimentação não aparece no contracheque dos servidores, disponível no site da Alerj. O valor é pago “por fora”, em depósito na conta bancária. Com isso, não é possível saber a quem os deputados estaduais estão destinando a maior parte do benefício. Ano passado, as despesas com o auxílio somaram R$ 93,9 milhões—em 2014, haviam sido 49,1 milhões coma rubrica. Todos os valores foram corrigidos pela inflação até abril de 2020, último mês com dados disponíveis. Para efeito de comparação, a prefeitura do Rio gastou R$ 177,3 milhões, em valores corrigidos, para destinar merendaescolarparaoscercade641 mil alunos de sua rede no ano passado. O benefício da Alerj atende a cerca de 4.800 funcionários lotados hoje na Casa. Não há descontos para os servidores, que podem receber até R$ 180 por dia útil.

A Alerj informou que os valores não são registrados no demonstrativo de pagamento “porquenãosãoconsiderados remuneração em contracheque”. Como o funcionário não precisa prestar contas do uso do valor depositado como auxílio-alimentação, ele é visto por muitos, na prática, como um complemento ao salário. Desde meados de 2018, os valores desembolsados pela Assembleia para bancar o benefício têm sido maiores do que o dinheiro destinado ao famoso auxílio-educação, que já foi alvo de escândalo e desvios. Foi em 2018, em pleno Regime de Recuperação Fiscal, que houve o maior aumento percentual de gastos do benefício em relação ao ano anterior: 50%. Naquele ano eleitoral, a Alerj desembolsou R$ 79,1 milhões para pagar o auxílio-alimentação a seus servidores. Em 2017, tinham sido R$ 52,4 milhões. O benefício é gerenciado por meio de cotas. Cada deputado tem até 28 delas diariamente para destinar aos funcionários, com o limite de duas por pessoa por dia útil (três se for motorista). O valor dessas cotas passou de R$ 40 para R$ 60 em 2018, o que ajuda a explicar o salto nos gastos. O levantamento das despesas foi feito com base em registros mensais do Poder Legislativo disponibilizados desde 2013. O GLOBO solicitou duas vezes, por meio de Lei de  Acesso à Informação, os gastos com o benefício por gabinete parlamentar, masa Alerj negou os pedidos soba alegação de que haveria “mobilização excessiva da máquina pública” para cumprira demanda.

AUXÍLIO PARA QUEIROZ

A Casa não informou a média de servidores que ganharam o auxílio por ano. A Alerj atribuiu o aumento sucessivo de despesas aos reajustes anuais com o benefício, recebido não apenas por quem trabalha em gabinetes, mas também em comissões e outras diretorias. A Alerj ressaltou que “o auxílio-alimentação é o único benefício pago aos funcionários sem qualquer condicionante”. Enquanto era deputado estadual, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) destinou auxílio-alimentação ao então assessor Fabrício Queiroz e familiares, além de parentes  do miliciano Adriano da Nóbrega. O Ministério Público do Rio suspeita que alguns desses ex-assessores eram funcionários fantasmas. Queiroz, sua família, a ex-mulher e a mãe de Adriano receberam, juntos, R$ 442,8 mil. Queiroz está no centro da apuração sobre a suposta prática de “rachadinha” no gabinete de Flávio, também investigado. Nóbrega, que era acusado de comandar uma milícia, foi morto em fevereiro, na Bahia, onde estava foragido, após um confronto com policiais. O GLOBO só obteve os registros de quanto cada um ganhava mensalmente “por fora” do salário porque entrou com um pedido de Lei de Acesso à Informação. Além de Queiroz, receberam auxílio-alimentação sua mulher, Márcia Aguiar, suas filhas, Nathália e Evelyn, e a enteada, Evelyn Mayara. Elas

ganharam ao menos R$ 338,1 mil, mas o valor pode ser maior,porque aAlerjsót em informações sobre o benefício por pessoa a partir de 2011. Queiroz, Márcia e Nathália foram nomeados para o gabinete de Flávio em 2007. Há meses em que o benefício de Queiroz chegou aR $2,7 mil, val orque se somava à remuneração. Ex-capitão do Bope, o miliciano Adriano da Nóbrega teve a ex-mulher, Danielle Mendonça, e a mãe, Raimunda Veras, indicadas pelo amigo Queiroz para o gabinete de Flávio na Alerj. Juntas, elas receberam pelo menos R$ 104,7 mil em auxílio-alimentação. O MP do Rio suspeita que Danielle e Raimunda eram funcionárias fantasmas. A mãe de Adriano ficou no gabinete entre maio de 2016 e novembro de 2018. Nesse período, recebia uma média de R$ 1,7 mil em valealimentação por mês.