O globo, n. 31792, 22/08/2020. Sociedade, p. 19

 

Fogo de devastação

Rafael Garcia

22/08/2020

 

 

Nasa mostra que 54% das queimadas na Amazônia estão ligadas ao desmatamento

Um novo sistema de monitoramento de queimadas na Amazônia capaz de identificar a fonte dos focos de incêndio mostrou que, em 2020, 54% das queimadas na área brasileira do bioma tiveram como origem o desmatamento, ainda que a temporada de fogo mal tenha começado na região. Usando dados do sitema VIIRS de imagens de satélite, o trabalho é encabeçado por Douglas Morton, cientista do Centro Goddard da Nasa (agência espacial americana), e Niels Andela, da Universidade de Cardiff (Gales). O sistema criado para o projeto GFED (Global Fire Emissions Database) é o primeiro a apontar em tempo real não apenas onde os focos de fogo estão mas também sua natureza: incêndios florestais, queimadas pequenas para limpar pastagem, queima de campos naturais ou incineração de árvores após desmate. — Queremos maximizar nosso entendimento sobre o que ocorre em solo e, honestamente, combater algumas falsas narrativas que foram apresentadas sobre a a atividade de queimada na região — disse Morton ao GLOBO. Boa parte da motivação para montar o novo sistema surgiu após a crise do desmatamento em 2019, quando o governo federal disseminava a ideia de que os fogos na Amazônia estariam ocorrendo em áreas que não são de floresta, para atividades como limpeza de pastagem ou lavoura, ou incêndios florestais “naturais”. Para saber se um foco de fogo tem origem no desmate, o sistema da Nasa analisa o comportamento do ponto de radiação detectado pelo satélite ao longo de vários dias e o compara a pontos encontrados ao redor para fazer uma classificação. Enquanto o fogo de uso agropecuário tende a ser circunstancial e curto, o fogo do desmate é longo e emite grande porção de radiação.  

— Um fogo que começa numa área que foi desmatada vai queimar por vários dias, e o processo de limpar e queimar aquela paisagem envolve empilhar a madeira e atear fogo repetidas vezes — explica Morton. — Não é esse o padrão que vemos quando se queima os resíduos de uma colheita ou se reforma uma área de pasto. Neste ano, antecipando possível crise como a de 2019, o governo decretou moratória no uso do fogo para manejo de terras na Amazônia, em 15 de julho, e busca prorrogar a operação militar de Garantia da Lei e da Ordem na região. — Do meu ponto de vista, com nossa nova ferramenta de classificação, não enxergamos essa moratória tendo muito impacto, se é que teve algum —diz Morton. Como a temporada de desmate e queimadas no começo, ainda é cedo para dizer se 2020 terá mais um recorde decenal de fogo, como teve 2019, mas dados até agosto mostram queimadas em ritmo já acima da média. Para o cientista atmosférico Paulo Artaxo, da USP, este ano inspira preocupação pois as previsões climáticas para os próximos seis meses indicam seca mais intensa na região. A estiagem não só eleva o risco de fogos de agropecuária escaparem para as florestas como também facilita o trabalho de quem desmata grandes áreas ilegalmente. — O perigo de falar só da questão do tempo é que isso permite ao governo dizer que o aumento das queimadas ocorre só porque está chovendo menos, mas não é verdade — diz Artaxo. — Esse aumento se segue ao desmonte dos órgãos de fiscalização do Ibama feitos desde janeiro do ano passado. Sem fiscalização, o desmatamento corre solto. Incêndios florestais são preocupantes, mas, como poupam a copa das grandes árvores, são muito menos destrutivos do que o desmate.   

— A Amazônia não é inflamável naturalmente, não pega fogo como cerrado e pantanal —explica Ane Alencar, diretora do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). —A floresta amazônica tem um regime de fogo muito longo. Varia de 500 a 1.000 anos para um fogo natural voltar a ocorrer no mesmo lugar da floresta.

  HIPÓTESE REFORÇADA

Características como essas foram levadas em conta por Andela para criação do novo sistema de classificação de fogos da Nasa. Mesmo sistemas que não possuem essa ferramenta, como o do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), conseguem ver essa correlação de outras maneiras.

O Deter, sistema de alertas de desmate do Inpe, viu 34% mais devastação nos últimos 12 meses do que no período anterior. E áreas onde o desmatamento se ampliou são justamente aquelas onde o fogo detectado pelo Programa Queimadas, também do Inpe, está ocorrendo com maior intensidade agora em agosto. Os focos mais preocupantes são o trecho da BR-163 no sul do Pará, o trecho da Transamazônica no sudeste do Amazonas, a região a oeste do Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, e a Terra do Meio, no Pará. — Nossa nova ferramenta, junto de outras informações que são produzidas em solo e com uso de dados de satélite, mostram uma imagem clara de como o fogo de desmatamento é o dominante em 2020, nesta estação de fogo na região amazônica —diz Morton. O GLOBO contatou o Ministério do Meio Ambiente, que não quis comentar o assunto. Direcionou os questionamentos ao Ministério da Defesa e à Vice-Presidência, que não se pronunciaram até ontem à noite. 

“Queremos maximizar nosso entendimento sobre que ocorre em solo e, honestamente, combater algumas falsas narrativas que foram apresentadas sobre a a atividade de queimada na região amazônica” _ Douglas Morton, chefe do Laboratório de Ciência Biosférica do Centro Goddard da Nasa (agência espacial dos EUA)