O globo, n. 31790, 20/08/2020. País, p. 4

 

Dossies na mira do STF

Carolina Brígido

20/08/2020

 

 

Cármen vota pela suspensão de relatórios

 A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou ontem a favor da suspensão da produção de dossiês, pelo Ministério da Justiça, a respeito da vida pessoal e política de servidores públicos. Segundo ela, relatora do processo, fabricar documentos que contenham essas informações representa desvio de finalidade da atividade de inteligência do Estado.

A ação foi apresentada à Corte depois da revelação, feita pelo portal UOL, de um relatório elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), vinculada à pasta da Justiça, com dados de cerca de 600 servidores identificados como integrantes de “movimentos antifascistas”.

Ao se pronunciar no julgamento, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu a legalidade do documento e pontuou a diferença entre “relatório de inteigência e investigação criminal”. A posição foi acompanhada pelo advogado-geral da União, José Levi.

Cármen, no entanto, considera que a atuação extrapolou o limite das ações que cabem ao governo:

— Não compete (a órgão estatal) fazer dossiês contra quem quer que seja nem instaurar procedimentos de cunho inquisitorial. No Direito Constitucional, o uso ou abuso da máquina estatal para colheita de informações de servidores com postura contrária ao governo caracteriza, sim, desvio de finalidade, pelo menos em tese.

No voto, a ministra lembrou que o ministro da Justiça, André Mendonça, exonerou o diretor de inteligência da secretaria depois que o caso veio à tona. Ela afirmou ainda que o ministério, ao prestar esclarecimentos, não rebateu a existência do dossiê, o que justifica o prosseguimento da ação.

— A pergunta é simples: existe ou não existe? Se existe e está fora dos limites constitucionais. Isso é lesão a preceitos fundamentais. E, se não existe, basta dizer que não existe — disse a ministra, complementando a fala em seguida. —O que recebi foi o esclarecimento muito sincero do ministro da Justiça (Mendonça). O ministro não solicitou qualquer relatório, só teve conhecimento de sua possível existência pela imprensa. Não é dito: “Não é dossiê, não há relatório”. Não é dito. Não é conjectura, não é ilação e não é interpretação. Não há uma negativa peremptória, até porque o ministro disse que não sabia dos relatórios até a divulgação pela imprensa — destacou Cármen.

Desta maneira, segundo a ministra, cabe ao Supremo impor limites à ação do governo e interromper a prática.

— Também não se demonstra legitimidade da atuação de órgão estatal de investigar e de compartilhar informações de participantes de movimento político, aqui chamados antifascistas, a pretexto de se cuidar de atividade de inteligência, sem se observar o devido processo legal.

ARAS DEFENDE LEGALIDADE

A ação foi levada ao Supremo pelo partido Rede, que pediu a “imediata suspensão” da produção de dossiês. Antes do posicionamento de Cármen, Aras defendeu a atuação do Ministério da Justiça neste caso como uma maneira de proteger a segurança pública:

— A atividade de inteligência antecipa cenários de risco. O Ministério Público não admite que governos espionem opositores políticos. E isso precisa ficar claro. Relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal. Quando pessoas armadas se reúnem em protestos políticos, a segurança pública pode ser colocada em risco. Relatórios de inteligência antecipam cenários de risco, não são investigações criminais

O advogado-geral da União, José Levi do Amaral Júnior, também afirmou que o Ministério da Justiça atuou dentro de parâmetros legais.

— É informação, não é investigação e não há dados para além de informações públicas. A União, aí incluído o Ministério da Justiça, rejeita toda e qualquer forma de autoritarismo ou de totalitarismo, incluindo o fascismo. Nosso país é uma democracia, uma democracia vibrante, plural. Fosse uma autocracia, não estaríamos em meio a um debate livre como estamos.

Os ministros receberam o material nesta semana, após determinação de Cármen.

O documento também está em posse da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, do Congresso. Como o material é sigiloso, os parlamentares precisarão se identificar por meio de senhas para acessar o conteúdo. Por fim, a ministra lembrou que a produção deste tipo de material contra cidadãos era uma prática comum na ditadura militar.

— O proceder de dossiês, pastas relatórios, informes sobre a vida pessoal dos cidadãos brasileiros e sobre suas escolhas não é nova neste país, e não é menos triste ter mosque voltara este assunto.

O julgamento vai continuar hoje, com os votos de outros nove ministros. O decano da Corte, Celso de Mello, está de licença médica e não vai participar da análise do caso.