O Estado de São Paulo, n.46273, 26/06/2020. Política, p.A4

 

Inquérito da 'rachadinha' vai para 2º instância

Caio Sartori

26/06/2020

 

 

Rio. Desembargadores entendem que Flávio Bolsonaro tem foro e retiram caso de juiz responsável por medidas duras contra senador; decisão contraria entendimento do STF

Senador. Defesa de Flávio comemorou decisão e diz que vai buscar anulação de provas

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) conseguiu ontem uma vitória no inquérito que investiga um suposto esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). A prática consiste na devolução de parte dos salários dos servidores para determinado político. A 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio retirou, por 2 votos a 1, o caso das mãos do juiz Flávio Itabaiana Nicolau, da 27ª Vara Criminal, responsável por decisões desfavoráveis ao filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro e pelo mandado de prisão do ex-assessor Fabrício Queiroz. O caso foi encaminhado para o Órgão Especial do TJ-RJ.

Os desembargadores acolheram habeas corpus apresentado pela defesa, que argumentou que Flávio tinha direito a foro privilegiado no Órgão Especial, a segunda instância da Justiça fluminense, por ser deputado estadual à época dos fatos investigados. Até então, a investigação corria em primeira instância, em acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o foro privilegiado se restringe a fatos ocorridos no mandato e em função dele .

No habeas corpus, os advogados de Flávio pediram ainda a anulação de todas as provas obtidas a partir de decisões de Itabaiana, o que não foi concedido pela da 3.ª Câmara. Os magistrados entenderam que caberá ao relator do caso no Órgão Especial decidir pela anulação ou não das provas. No inquérito, aberto em 2018, Itabaiana autorizou quebras de sigilo bancário, fiscal e eletrônico, além de mandados de busca e apreensão. Foi ele quem concedeu a prisão de Queiroz, apontado pelos investigadores como suposto operador financeiro do esquema de Flávio na Alerj. Agora, o sistema do TJ sorteará um relator para o caso entre os desembargadores.

A decisão chega num momento em que o Ministério Público estava prestes a apresentar a primeira denúncia sobre o caso. A decisão também altera a condução das investigações no MP. O inquérito era tocado pelo Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc). Agora, passa para o Grupo de Atribuição Originária Criminal da Procuradoria-Geral de Justiça, comandado pelo chefe da Promotoria, Eduardo Gussem, que tem atuação no Órgão Especial do TJ.

Com as decisões de Itabaiana e seus desdobramentos colocados em xeque, as provas obtidas até agora podem ser questionadas. O MP deve recorrer – formalmente afirmou que aguarda a publicação do acórdão da sessão para estudar o que será feito. A Promotoria tem direito a entrar com recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF), caso entenda que os desembargadores feriram um entendimento da Corte.

Com a mudança, a defesa de Flávio volta a ganhar tempo. Desde o início, a estratégia dos diferentes advogados escolhidos pelo senador foi de tentar paralisar de diversas formas a investigação. No ano passado, uma decisão monocrática do presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu as investigações por quatro meses – o plenário Corte derrubou a decisão em novembro passado.

Todos os investigados no inquérito acabaram se beneficiando da decisão de ontem. No Órgão Especial, porém, cada caso será avaliado individualmente. Por isso, o habeas corpus apresentado por Alexandre Santini, sócio de Flávio na loja da Kopenhagen – por meio da qual eles teriam lavado dinheiro desviado da Alerj, segundo o MP – foi retirado da pauta de ontem.

Até investigados em outros inquéritos esperam mudanças em seus casos. A defesa do exgovernador do Rio, Sérgio Cabral, já pensa em reivindicar o mesmo direito. Preso desde novembro de 2016, Cabral foi condenado 13 vezes por um juiz federal de primeira instância, Marcelo Bretas. Se o TJ aplicaro mesmo entendimento a ele, deveria responder também na segunda instância.

Defesa. Em nota, a defesa de Flávio comemorou a decisão. “Como o Tribunal de Justiça reconheceu a incompetência absoluta do juízo de primeira instância, a defesa agora buscará a nulidade de todas as decisões e provas relativas ao caso desde as primeiras investigações”, afirmam os advogados Luciana Veiga e Rodrigo Roca. Recém contratado, Roca compunha a defesa quando o pedido de habeas corpus foi apresentado por Luciana, mas foi o responsável por fazer a sustentação oral na sessão de ontem.

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Entenda o rumo da investigação

1. O que acontece com as decisões de Itabaiana?

Ao tirarem o caso das mãos de Itabaiana, os desembargadores da 3.ª Câmara Criminal jogaram para o Órgão Especial do TJ o poder de decidir sobre o que fazer com as decisões já tomadas. Entre as medidas cautelares autorizadas pelo magistrado estão a prisão preventiva de Fabrício Queiroz, mandados de busca e apreensão e quebras de sigilo bancário, fiscal e telefônico.

2. Por que o caso vai para o Órgão Especial?

É nesse colegiado de 25 desembargadores que deputados estaduais têm foro. A defesa de Flávio alegou que, por ele ter esse cargo na época dos supostos crimes, teria direito a responder na segunda instância – não na primeira.

3. Cabe recurso? O Ministério Público vai recorrer?

Responsável pelo inquérito que corre desde 2018, o Ministério Público do Rio tem direito a recorrer no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e até no Supremo Tribunal Federal (STF), se entender que os desembargadores foram contra um entendimento da Corte.

4. Queiroz pode ser solto?

Preso na semana passada, Fabrício Queiroz não deve ser solto automaticamente com a decisão de ontem, já que as medidas autorizadas por Itabaiana não foram anuladas.