Correio braziliense, n. 209929, 11/09/2020. Mundo, p. 14

 

Mortes e caos na Colômbia

Rodrigo Craveiro 

11/09/2020

 

 

As carcaças de ônibus ainda estavam espalhadas pela Autopista Sul — uma das principais avenidas de Bosa (uma das cidades-dormitórios de Bogotá). Os postos policiais dos Comandos de Atenção Imediata (CAI) estampavam pichações com a palavra “Porcos” e tinham os vidros quebrados. Em pronunciamento à nação, o presidente da Colômbia, Iván Duque, prestou condolências à família de Javier Ordóñez, anunciou que a Procuradoria-Geral da Nação abriu inquérito e admitiu que “alguns” dos membros da Força Pública não honram o uniforme. Ordónez, um advogado de 46 anos que usava um táxi para sustentar os dois filhos, morreu depois de ser imobilizado por dois policiais e submetido a sucessivos choques elétricos, na madrugada de quarta-feira.

As imagens da abordagem, registradas em vídeo por um vizinho de Ordóñez, semearam uma onda de revolta no país. Na noite e na madrugada de ontem, violentos protestos terminaram com a morte de 10 pessoas, a maioria atingida por tiros, em Bogotá em cidades vizinhas. Seis delas tinham entre 17 e 27 anos. Manifestações também ocorreram em Cali e em Medellín. Pelo menos 248 civis e 147 policiais ficaram feridos. Hernando Bermúdez Barrero, primo de Javier, usou o próprio Facebook para um desabafo. “Não! Meu primo Javier Humberto Ordóñez Bermúdez não morreu durante um procedimento policial. Meu primo foi torturado e assassinado”, escreveu.

Os dois policiais que participaram da ação têm 27 e 30 anos, chegaram a Bogotá em 2017 e não apresentavam antecedentes disciplinares. Ambos foram suspensos. A prefeita de Bogotá, Claudia López, descartou impor toque de recolher na capital, mas exortou os cidadãos a permanecerem em casa depois das 19h. Ela também reconheceu abusos por parte da polícia. “Há evidências sólidas do uso indiscriminado de armas de fogo por membros da polícia (...) Que tipo de treinamento eles recebem para ter aquela resposta absolutamente desproporcional a um protesto?”, questionou. Duque defendeu “separar as condutas individuais da atuação de uma instituição que tem servido aos colombianos”. “Entendemos a dor da família (de Javier) e quero ser muito claro com ela: os fatos serão investigados com total rigor e prontidão. (…) Estamos investigando a polícia”, disse. “Não podemos permitir que surjam vozes que estigmatizem a nossa Força Pública”, acrescentou. No início da noite de ontem, novos protestos irromperam em Bogotá.

Em entrevista ao Correio, Andrés Macías — especialista em segurança da Universidad Externado de Colombia (em Bogotá) — afirmou que a promessa de rápida investigação, por parte de Duque, é insuficiente para acalmar a situação no país e para fortalecer a imagem da polícia. “O presidente pode envolver-se com mais ênfase na crise e comandar a divulgação dos resultados da investigação. É preciso que o inquérito não demore muito, a fim de demonstrar que a Justiça colombiana funciona”, sugeriu.

De acordo com Macias, mais do que uma reforma imediata da polícia, é fundamental um debate sobre o funcionamento da Polícia Nacional. “Creio ser crucial a revisão dos protocolos de recrutamento, instrução e capacitação dos membros das forças de segurança, bem como dos processos internos de investigação, para revisar e prevenir falhas”, comentou. O problema, segundo o estudioso, não está nas armas usadas pela polícia, mas não forma como elas são utilizadas. “Também vejo como válida a discussão sobre se a polícia deve seguir incorporada ao Ministério da Defesa ou se é o momento de ser controlada pelo Ministério do Interior ou por um novo Ministério da Segurança. Existe, ainda, grande controvéria no país: legalmente, os prefeitos e governadores são a primeira autoridade de polícia no território. Ao mesmo tempo, a estrutura hierárquica da polícia faz com que os comandantes recebam ordens superiores — em muitos casos, de autoridades nacionais.”

Condenação

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),  órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), divulgou comunicado por meio do qual “condena enfaticamente os casos de brutalidade e de abuso policial”. A entidade lembra que Ordóñez morreu  em consequência dos golpes e das descargas elétricas provocadas pelos policiais. “A CIDH sublinha que o uso da força por parte do aparato de segurança do Estado deve atender aos princípios da legalidade, da necessidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, colocando no centro da proteção os direitos de todas as pessoas”, afirma a nota, segundo a qual o Estado tem o dever de garantir o direito à vida e à liberdade de manifestação.