Correio braziliense, n. 20926, 08/09/2020. Economia, p. 6

 

Corte no auxílio eleva desigualdade no país

Rosana Hessel 

08/09/2020

 

 

 Recorte capturado

A pandemia da covid-19 está deixando um rastro de destruição e aumentando a desigualdade na economia global — e no Brasil não é diferente. A certeza entre especialistas ouvidos pelo Correio é de que, apesar de o auxílio emergencial de R$ 600 ter ajudado os mais vulneráveis a enfrentarem a turbulência — o valor até o fim do ano será de R$ 300, e tirado uma boa parte da população da zona de pobreza neste ano, o quadro vai piorar em 2021. Estimativas preliminares apontam que, pelo menos, uma dezena de milhões de pessoas deve voltar para as faixas mais baixas de renda no ano que vem, ampliando o fosso entre ricos e pobres no país.

Estudo recente liderado por Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), mostra que, até julho último, 13,1 milhões haviam saído do grupo das pessoas com renda per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 552), em grande parte, devido a medidas como o auxílio de R$ 600. No ano que vem, contudo, o mesmo número de pessoas deve sofrer perda de renda e engrossar as faixas D e E, formadas por família com renda mensal até R$ 2,5 mil, que são a base da pirâmide social.

“Tudo vai depender do que o governo fizer em termos de ajuda à população de baixa renda. Como a mágica da melhora temporária na renda devido ao auxílio emergencial vai acabar, pelo menos 13 milhões de pessoas voltarão para as faixas mais pobres”, aposta Neri.

De acordo com o pesquisador, o auxílio evitou que boa parte da população passasse fome em meio à recessão profunda em que o país mergulhou com a covid-19. Mas reforça que o benefício começa a ser reduzido em setembro. “A medida vai diminuir o ganho de boa parte das pessoas que saíram da pobreza. Elas devem voltar para o estrato mais baixo já ao longo deste ano”, afirma.

Mercado de trabalho

Levantamento feito por Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, identificou que 11 milhões de pessoas devem ser incorporadas às classes D e E entre 2019 e 2021. O inchaço das classes mais baixas de renda deverá ser mais perceptível no Nordeste. Contudo, o crescimento deve ser grande também no Sudeste, “por conta das perdas no setor de serviços, que tem peso relevante na região”.

“O agravante da piora na distribuição de renda que ocorrerá em 2021 é a deterioração do mercado de trabalho, com o aumento da base de assistência social hoje concentrada no Bolsa Família”, explica Vale. Ele lembra que as novas regras do mercado de trabalho podem permitir arranjos para essas classes durante a pandemia, mas não implicam melhora da renda. “Parece razoável trabalhar com piora adicional em 2021”, adianta.

Após a divulgação da queda histórica 9,7% do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre em relação ao anterior, Vale revisou de 5,3% para 4,8% a estimativa de retração da economia em 2020, mas manteve a projeção de crescimento de 2,2% em 2021, porque não vê um cenário de retomada acelerada, como o governo espera. A previsão de Vale é bem inferior à do Ministério da Economia, de 3,2%.

“O aumento da desigualdade, com mais pessoas perdendo renda e retornando para as camadas mais pobres, vai prejudicar a retomada em 2021, especialmente, via consumo das famílias. Desigualdade maior não ajuda o crescimento, e o padrão de consumo será de produtos básicos. Não haverá o salto de consumo que poderia ocorrer via crédito, porque a renda das pessoas não vai crescer”, explica o economista.

Sergio Vale lembra que, quando o Bolsa Família surgiu, houve forte ampliação do consumo no Nordeste, a região mais beneficiada pelo programa. “Pode ser que, a depender de quanto for o Renda Brasil, esse impacto aconteça de novo. Mas a base de comparação será ruim, já que vai ser bem menos que R$ 600 do auxílio emergencial”, afirma.

A economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, observa que as classes D e E já representam quase 60% da população. “Com as pessoas perdendo o emprego, pelo menos 3,8 milhões de domicílios devem ser adicionados às faixas mais pobres”, destaca. 

Alessandra acrescenta que, após apresentar crescimento neste ano, devido ao auxílio do governo, no ano que vem, a massa de renda deverá encolher significativamente, mesmo que o Executivo consiga lançar o Renda Brasil, programa que deve substituir o Bolsa Família, com benefício mensal de R$ 300 para 17 milhões de famílias. Atualmente, o Bolsa atende 14 milhões de famílias. “Pelas nossas estimativas, a massa de rendimentos da população deverá cair 4,2%, após crescer 4,5% neste ano. É uma paulada na renda”, adianta.

Jefferson Nascimento, coordenador de pesquisa da Oxfam Brasil, nota que a desigualdade, que é medida pelo Índice de Gini, vinha caindo desde 2001, mas voltou a crescer a partir da recessão de 2015, apesar de apresentar pequena variação em 2019. “E, agora, possivelmente, tornará a aumentar”, diz.