Correio braziliense, n. 20923, 05/09/2020. Colunas, p. 4

 

Nas entrelinhas: O Brasil pós-Lava Jato

Carlos Alexandre de Souza 

05/09/2020

 

 

O desmonte da Operação Lava-Jato, com a saída de Deltan Dallagnol e o pedido de demissão coletiva dos procuradores de São Paulo, é um sinal inequívoco do encerramento de um ciclo na política brasileira. Bastaram 18 meses para interromper o trabalho de seis anos no combate à corrupção. A força-tarefa trouxe à luz como o sistema político nacional e a elite econômica se associam para agir ao arrepio da lei e em benefício de interesse próprio. Evidentemente, a Lava-Jato pode ter cometido excessos. Mas é difícil encontrar razões consistentes que vão além de ataques de oratória para desqualificar um trabalho que envolveu três Poderes distintos — o Executivo, por meio da Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário — e obteve resultados inéditos para a sociedade brasileira. Assim como o país conheceu os caras-pintadas, que foram às ruas nos anos 1990 para pedir o afastamento de um presidente da República envolvido em escândalo de corrupção, uma geração de brasileiros assistiu, nos anos 2010, a uma operação que revelou esquemas nos quais altas autoridades da República mantinham uma relação delituosa com representantes do poder econômico. Não fosse a obstinação dos investigadores da Lava-Jato, permaneceriam nas sombras as propinas milionárias, as remessas ao exterior, a lavagem de dinheiro, a troca de favores, todos os delitos que resultaram na dilapidação da maior estatal brasileira, para muitos considerada um patrimônio nacional. Ao Partido dos Trabalhadores, mentor do saque à Petrobras revelado pela Lava-Jato, coube compensar os malfeitos com a prisão de sua estrela maior, o ex-presidente Lula, e aceitar o repúdio da sociedade brasileira ao PT nas eleições de 2018.

E agora? Como será daqui em diante? Essa é a questão que todos os detratores da maior operação de combate à corrupção devem tratar de responder. E as respostas devem ir além de promessas e belas palavras em transmissões via internet. Onde haveria mais casuísmo e parcialidade? Nos agentes públicos que, supostamente, violaram os ditames do processo penal contra um determinado grupo político, ou nos críticos da Lava-Jato que, não por coincidência, são alinhados aos adversários dos petistas nas eleições de 2018? Talvez a pessoa mais atingida por esse fogo cruzado seja Sergio Moro. Antes incensado pelo candidato Jair e seus simpatizantes como o fiador de um governo comprometido no combate à corrupção, o ex-juiz da Lava-Jato passou a ser execrado pelo presidente e pela claque bolsonarista a partir do momento em que, como ministro, não estaria agindo de acordo com os interesses do Planalto. Moro deixou o governo em abril. De lá para cá, o que ganhou notoriedade no que diz respeito à corrupção e a ilegalidades foram o dossiê abjeto produzido pelo ministério da Justiça para investigar cidadãos brasileiros supostamente antifascistas; as peripécias de um senador para driblar as investigações sobre rachadinhas; cheques ainda sem explicação na conta da primeira-dama.

A Lava-Jato, considerados todos os defeitos e críticas, permanece como um esforço indispensável para combater a corrupção endêmica e o desvio de finalidade no exercício do poder público. Somente o enfrentamento contra os malfeitos da administração pública será capaz de impedir que a sociedade brasileira assista, perplexa, ao prefeito de uma cidade do porte do Rio de Janeiro enterrar um processo de impeachment após a acintosa ação de “guardiões” empenhados em intimidar cidadãos e tentar calar a imprensa, recebendo salário do contribuinte. Enquanto práticas como essas forem recorrentes no Brasil, a Lava-Jato continuará a ter propósito.

A Lava-Jato, decerto, não está livre de equívocos. Corrijam-se, pois. E que as correções sejam feitas com o intuito de aperfeiçoar o trabalho em favor do cumprimento da lei, e não como método de perseguição, vendeta ou esvaziamento institucional.