O globo, n. 31784, 14/08/2020. País, p. 5

 

Ministros criticam dossiês: 'arapongagem é crime'

Carolina Brígido

14/08/2020

 

 

Julgamento no STF que delimitou poderes e atuação da Abin foi marcado por votos de alerta às atividades de inteligência dos governos. Plenário do tribunal analisará na semana que vem relatório do Ministério da Justiça sobre servidores “antifascistas”

 Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aproveitaram ontem o julgamento de um processo sobre a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para estabelecer limites para este tipo de atividade. A sessão foi uma prévia de outro julgamento polêmico, marcado para a próxima quartafeira, quando será debatida a ação que questiona a produção pelo Ministério da Justiça de um relatório sigiloso contra servidores ligados a movimentos antifascistas. A ministra Cármen Lúcia foi uma das mais veementes.

— Inteligência é atividade sensível do Estado, mas está posta na legislação como sendo necessária. Arapongagem é crime. Praticado pelo Estado, é ilícito gravíssimo. O agente que obtém dados sobre quem quer que seja fora da legalidade comete crime —disse ela, completando:

—O fornecimento de informações é ato legitimo, quando prestado conforme alei. Oque é pro ibi doé ques etornesubterfúgi opara o atendimento de interesses particulares.

Ministros citaram situações em que o serviço de inteligência abusou de suas atribuições para perseguir adversários políticos e cidadãos comuns no Brasil. Edson Fachin fez discurso duro contra a produção de dossiês.

— O Brasil da legalidade constitucional não admite autoritarismos, não compactua coma corrupção como forma de governança, protege a ordem jurídica democrática e tem um Judiciário que não se verga a ameaças ou agressões.Tem-seumcenário em que a ausência de protocolos claros de proteção e tratamento dedados, somadaà possibilidade de construção de dossiês investigativos contra servidores públicos e cidadão pertencentes à oposição política, deve gerar preocupações quanto à limitação constitucional do serviço de inteligência —disse Fachin.

Luís Roberto Barroso lembrou que a própria Abin já foi investigada antes por suspeita de ter extrapolado suas atribuições.

— O perigo é muito grande, atentaçãoé muito grande—observou.

MAIS REGRAS

Luiz Fux também demonstrou preocupações com abusos do serviço de inteligência.

— Em todos os países do mundo, os serviços de inteligência ficam submetidos não ao Executivo, masa uma autoridade autônoma e independentena tutelados dados. Há o justo receio sob o ângulo histórico e sob o prisma da realidade. Recentemente se queixou que a Abin deveria saber mais do que ela sabia —disse Fux.

Por nove votos a um, o Supremo decidiu ontem que a Abin pode solicitar informações de outros órgãos de inteligência, desde que a agência comprove o interesse público da medida, explique que o dado é fundamental para garantir a segurança nacional e declare como a informação será usada. Os ministros ressaltaram que informações pessoais sigilosas, como dados bancários, telefônicos e fiscais, só podem ser obtidas mediante autorização judicial.

O Supremo acrescentou que os compartilhamentos devem ser feitos por procedimentos específicos instaurados, para que seja possível a responsabilização de agentes no caso de desvios ou abusos.

O julgamento da ação da Rede Sustentabilidade contra a produção do dossiê pela secretaria do Ministério da Justiça está marcado para a próxima quarta-feira. Ao pedir que o processo da Abin fosse julgado antes, Cármen Lúcia, que relata os dois processos, quis preparar seus colegas para o próximo debate.