O globo, n. 31783, 13/08/2020. Economia, p. 29

 

Dificuldades no caminho

Manoel ventura

Marcello corrêa

13/08/2020

 

 

Bolsonaro e ala politica atrasam agenda de Guedes

A promessa de que Paulo Guedes tocaria uma agenda liberal à frente do Ministério da Economia ajudou o então candidato Jair Bolsonaro a angariar o apoio de empresários e agentes do mercado nas eleições. No primeiro ano, Guedes conseguiu aprovar a reforma da Previdência, considerada crucial para o país. Mas, passados quase 20 meses de governo, resistências de Bolsonaro e da ala política atrasaram boa parte das propostas do “Posto Ipiranga”. A demora também foi agravada pela pandemia.

A debandada que Guedes admite ver em sua equipe é um sintoma da dificuldade para avançar em pautas que enfrentam resistências, mas que são fundamentais para equilibrar as contas e permitir investimentos. O ministro, um crítico do inchaço na máquina pública, não conseguiu encaminhar a reforma administrativa ao Congresso. Já o plano de conseguir R$ 1 trilhão com privatizações deu lugar a uma meta mais tímida: vender a Eletrobras, processo que começou a ser discutido no governo de Michel Temer, em 2017, e empresas como Correios e Porto de Santos.

Aguardada pelo setor produtivo, a reforma tributária avanço umais pelo Congresso do que por iniciativa do Executivo, que chegou atrasado na debate e tenta aprovar proposta que prevê a desoneração da folha e criação de novo imposto.

A equipe de Guedes também teve avanços significativos.O maior foi a aprovação da reforma da Previdência. Outro êxito foi o fechamento do acordo entre União Europeia e Mercosul, que depende da aprovação nos países envolvidos. Em outra frente, o governo aprovou a Lei da Liberdade Econômica, como parte da agenda de desburocratização.

Guedes nunca escondeu que permaneceria no cargo enquanto suas propostas tivessem espaço. Ontem, o presidente fez um gesto público em defesa dessa agenda. Procurado, o Ministério da Economia listou ações como o envio de parte da reforma tributária e a venda de 84 ativos da União.

— O ministro trabalha com oquechamade big bold targets, grandes objetivos ousados — disse o secretário-executivo da pasta, Marcelo Guaranys.

Veja a seguir as promessas feitas e os resultados alcançados até agora.

Zerar o déficit

Uma das promessas mais emblemáticas de Paulo Guedes, escrita inclusive no programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro registrado junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi zerar o déficit público no primeiro ano de mandato e transformá-lo em superávit no segundo ano.

O resultado registrado pelo Tesouro Nacional passou longe da promessa do ministro. O governo registrou um rombo de R$ 95,1 bilhões em 2019, uma melhora no resultado de 2018 (R$ 120,3 bilhões), mas muito longe de zerar o déficit. O Brasil está no vermelho desde 2014 e reverter essa situação é tarefa difícil.  

Mas Guedes insistia que seria possível, a despeito da fala de praticamente todos os especialistas e de técnicos do governo. Em Davos, na reunião anual do Fórum Econômico Mundial, Guedes disse que metade dos recursos para zerar o déficit orçamentário viria da reforma da Previdência. A outra metade viria das concessões de petróleo, principalmente da camada pré-sal, e de privatizações de estatais. 

— Mais da metade do déficit vamos eliminar com a reforma da Previdência. Temos muitas concessões de petróleo. A outra metade disso, vamos eliminar neste ano com concessões de petróleo e uma lista imensa de privatizações. Então, em termos de dinheiro, vamos zerar o déficit este ano. Vamos trabalhar como as grandes companhias privadas, com metas ousadas — declarou Guedes, em janeiro de 2019. 

As privatizações não vieram, a reforma da Previdência não tem efeitos no curtíssimo prazo e as concessões de petróleo renderam menos que o esperado. No fim do ano, o governo ainda injetou R$ 10,1 bilhões em estatais (alta de R$ 4,8 bilhões na comparação com o ano anterior). Só a Emgepron, ligada à Marinha, recebeu R$ 9,6 bilhões, piorando o resultado do ano. 

Reforma tributária

Embora esteja hoje de volta à pauta do Congresso, o debate sobre a reforma tributária foi marcado por um atraso do governo, que demorou mais de um ano para encaminhar sua proposta ao Legislativo. 

Ainda assim, até agora só foi entregue a primeira etapa, que prevê a unificação de dois impostos federais: PIS e Cofins. O escopo do projeto nesta primeira etapa é menos ambicioso do que as propostas que já tramitam na Câmara e no Senado, que agregam ao processo de unificação tributos estaduais, como ICMS, e municipais, como ISS.

Ao longo de 2019, quando a reforma da Previdência parecia estar encaminhada, integrantes do governo falaram mais de uma vez que a proposta seria enviada "semana que vem". 

— Semana que vem acho que a gente já começa a entrar com a nossa proposta tributária também — disse Guedes durante evento em setembro do ano passado, ao comentar que o plano do governo se juntaria aos projetos em tramitação no Congresso. 

O texto acabou não avançando porque a equipe econômica precisou reorganizar o projeto após perder o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, defensor da proposta de criar um imposto sobre transações financeiras como contrapartida à desoneração de folha de pagamentos. 

A ideia sempre enfrentou resistência do presidente Jair Bolsonaro e do Congresso porque o novo tributo segue os moldes da antiga CPMF. No primeiro momento, Guedes chegou a afirmar que a proposta estava abandonada, mas o plano voltou à cena neste ano, por ser central para viabilizar o desejo da equipe econômica de baratear o custo do trabalho.

Junto com a indefinição sobre a reforma tributária, ficaram outras promessas não cumpridas, como a redução dos benefícios fiscais, que cresceram em 2019, e o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda, que Bolsonaro quer aumentar de R$ 1,9 mil para R$ 5 mil. 

Privatizações

Arrecadar mais de R$ 1 trilhão com a privatização de empresas estatais. E mais R$ 1 trilhão com a venda de imóveis. Essas eram as promessas de Guedes. Nada disso até agora, porém, efetivamente avançou. A saída de Salim Matttar da Secretaria de Desestatizações representa a frustração da equipe do ministro com a demora nesse processo. 

Até agora, todas as vendas feitas no governo foram conduzidas por estatais como a Petrobras e o BNDES. Mas nada foi vendido diretamente pelo Poder Executivo. Pelo contrário, o governo Bolsonaro criou uma estatal: a NAV Brasil, responsável pelo controle do espaço aéreo.

 — Eu quero privatizar todas as empresas estatais. Essa é a proposta. A decisão final é do Congresso. A minha obrigação é fazer o diagnóstico e entregar a prescrição. O Congresso vai decidir — disse Guedes, em setembro do ano passado. 

Apesar de declarações como essa, o governo não encaminhou nenhuma nova privatização ao Congresso. O ministro já falou em vender a Eletrobras, a PPSA (responsável pelos contratos do pré-sal), os Correios e o Porto de Santos. Apenas a Eletrobras está em discussão pelos parlamentares, mas a sua venda foi proposta ainda durante o governo Michel Temer, em 2017. 

Em 2019, falou-se na privatização de nove empresas (Telebras, Correios, Codesp, Dataprev, Serpro, Emgea, Ceitec, Ceagesp). Nenhum cronograma ou detalhe foi apresentado na ocasião. No fim do mesmo ano, o governo apontava para uma arrecadação de R$ 150 bilhões, em 2020, com as privatizações.

No mês passado, nova entrevista à imprensa. Desta vez já constavam no pacote a privatização de 12 empresas, para 2021. De novo, nenhum cronograma ou detalhe foi apresentado.

Reforma administrativa

Guedes classifica as principais despesas públicas como “torres”. Seriam três torres, na visão dele: os gastos com Previdência, com juros e com o funcionalismo público. A derrubada da terceira torre está atrasada e foi o estopim da saída de Paulo Uebel do ministério. O agora ex-secretário foi responsável por propor a reforma administrativa, que visa a reduzir os gastos com servidores públicos .

O envio da medida ao Congresso foi adiado por diversas vezes. Há uma forte resistência dentro do governo a essa proposta, vista como impopular e ruim para a imagem de Bolsonaro.

Nesta semana, O GLOBO revelou que o governo decidiu adiar o envio do projeto ao Congresso para 2021, desta vez com o argumento de que é necessário esperar a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. O governo temia enviar o texto diante da proximidade das eleições municipais e não encontrar ambiente no Legislativo para a aprovação da proposta.

No ano passado, Guedes justificou que a reforma fora adiada no ano passado por conta de propostos na América Latina. Neste ano, a justificativa para o atraso, além do coronavírus, são as eleições municipais e a mudança nas presidências da Câmara e do Senado. 

No início deste ano, Guedes falou que a reforma seria proposta “em duas semanas” e via a reforma como “simples” de ser aprovada. 

— Nós estamos falando de uma a duas semanas — disse o ministro, em janeiro, defendendo que o objetivo de proposta seria valorizar o bom servidor.

Pacto Federativo

Após a aprovação da reforma da Previdência, Guedes propôs ao Congresso um conjunto de três propostas de emenda à Constituição (PEC) que chamou de agenda de transformação do Estado e descentralização de recursos para governos locais. O plano foi enviado já desidratado, sem a reforma administrativa que acabou engavetada. 

— O Brasil é uma pirâmide de cabeça pra baixo. Os poderes, recursos e atribuições estão em Brasília. E a nossa ideia é virar essa pirâmide e colocar ela direito. Os recursos tem que descer. O dinheiro tem que ir onde o povo tá. E o nosso pacto federativo é esse — disse o ministro em seu discurso de posse, em janeiro do ano passado.

Os projetos para garantir o “Mais Brasil, Menos Brasília” prometido na campanha foram encaminhados no Senado, mas pouco avançaram. Só o texto que trata da extinção de fundos públicos teve sucesso, ao ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). 

Já a principal proposta, apelidada de PEC do pacto federativo, ficou travada. Mesmo antes da crise do coronavírus, havia resistência à agenda, que prevê redistribuição de até R$ 400 bilhões a estados e municípios, mas, em contrapartida, contém um duro ajuste fiscal. 

O texto prevê, entre outros pontos, uma autorização para que União, estados e municípios acionassem um estado de emergência no qual poderiam cortar salários e jornada de servidores públicos. 

A proposta também permite que os mínimos constitucionais de gastos com saúde e educação sendo combinados, abrindo caminho para acabar de vez com o piso de despesas nessas áreas. Guedes defende que as prioridades do Orçamento sejam debatidos todos os anos pela classe política.

Há incerteza também sobre o avanço da PEC emergencial, que consiste apenas no trecho de medidas urgentes da proposta do pacto federativo, incluindo a possibilidade de cortes no funcionalismo.

Desburocratização

Sancionada em setembro do ano passado, a Lei da Liberdade Econômica é considerada uma vitória da equipe econômica. A agenda foi tocada pelo secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, que deixou o governo após a reforma administrativa ter sido engavetada.

O texto facilita, entre outros pontos, a abertura de empresas ao isentar a apresentação de alvarás por negócios de baixo risco, como pequenos comércios. A lei também abriu caminho para o uso de documentos digitais, que passam a ter a mesma validade dos impressos.

— No Brasil, hoje, a pessoa precisa passar na junta comercial, precisa pedir alvará, ir em seis, sete, oito lugares, para depois de oito, nove, dez meses, conseguir gerar emprego, abrir uma empresa. Deveria ser o contrário. Ninguém é proibido de trabalhar, de criar empregos, de gerar riqueza, você tem que abrir imediatamente, você avisa aos servidores públicos depois — disse Guedes em agosto passado, ao defender a aprovação da lei.

Ao deixar o cargo, no entanto, Uebel deixa o comando de uma agenda que ainda estava em construção. Em recente entrevista ao GLOBO, o então secretário disse que o plano da equipe era acelerar o processo de desburocratização após a pandemia, que aumentou a necessidade pela digitalização.

Abertura comercial e acordo com Mercosul

— A nossa imagem está muito ruim lá fora. Uma parte porque nós também falamos mal de nosso próprio país lá fora (...) Eu percebo também que lá fora há um certo oportunismo protecionista — disse o ministro,  em 30 de junho de 2020, durante audiência no Congresso.

Sob a gestão de Paulo Guedes, o acordo entre Mercosul e União Europeia avançou parcialmente. O entendimento entre os dois blocos foi fechado em junho do ano passado, após décadas de negociações, mas ainda depende aval dos países para se concretizar. Há muitas dúvidas sobre o aval de países europeus, principalmente por incertezas respeito da política ambiental brasileira. 

Quando foi anunciado, o Ministério da Economia estimou um aumento de US$ 100 bilhões nas exportações até 2035. Nesse período, o Produto Interno Bruto (PIB) teria um crescimento de até US$ 125 bilhões.

O plano, no entanto, ainda não foi à frente. Só neste ano, França e Holanda se posicionaram contra a medida, citando críticas às ações de preservação da Amazônia por parte do governo brasileiro. 

A abertura econômica é uma das promessas de campanha de Bolsonaro e Guedes. 

Reforma da Previdência

Com apoio do hoje opositor Rogério Marinho (ministro do Desenvolvimento Regional e na época secretário especial de Previdência e Trabalho), Guedes conseguiu aprovar no Congresso uma reforma da Previdência robusta, com previsão de economia de R$ 850 bilhões em dez anos.  

Apesar de menor do que o ministro queria — uma economia de R$ 1 trilhão — a aprovação da proposta foi considerada uma vitória para Guedes. Foi o principal feito do governo na área econômica até agora, com impacto no longo prazo mas também na percepção imediata de investidores e do mercado.

Mesmo assim, o próprio ministro reclamou que o Congresso retirou estados e municípios da proposta e não aprovou o sistema de capitalização defendido por ele. Por esse sistema, cada trabalhador tem uma “poupança” para a sua aposentadoria. Hoje o sistema é de “repartição”, pelo qual os trabalhadores ativos contribuem para os aposentados.  

— O sistema de repartição tem algumas bombas-relógio. A primeira bomba é a demográfica. A demografia é perversa. Quando eu era jovem, entrei no mercado de trabalho, você tinha catorze contribuintes para cada aposentado, hoje já são sete contribuintes para cada aposentado. Daqui a 20, 30 anos, serão dois contribuintes para cada aposentado. Isso significa que o sistema não resiste. O grande problema do sistema de repartição é esse — disse no fim do ano passado.