O Estado de São Paulo, n.46268, 21/06/2020. Metrópole, p.A16

 

Covid-19: A tragédia do século 21

Ricardo Brandt

21/06/2020

 

 

Mortes provocadas pela pandemia superam violência, catástrofes e doenças campeãs em letalidade

Em três meses, a covid-19 matou no Brasil mais do que outras doenças, catástrofes naturais, tragédias e mazelas urbanas, como a violência – problema endêmico no País. Com 50.058 mil vítimas até ontem e com a transmissão do coronavírus em crescimento acelerado, a pandemia se consolida como uma das piores crises sanitárias da história.

O Estadão reuniu dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 1996 a 2020, e de catástrofes, como guerras, atentados, tempestades, enchentes e outras pandemias e epidemias para comparar o tamanho da atual tragédia. O rastro de letalidade da covid-19 supera o deixado por armas de fogo, acidentes (de trânsito, aéreos e marítimos), doenças que protagonizaram epidemias recentes da história, como a aids e a dengue, e até mesmo por enfartes.

“E ainda não chegamos nem na metade da covid-19”, afirma o virologista Maulori Curié Cabral, professor do Departamento de Virologia, do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio (UFRJ). Ele afirma que ainda é cedo para fazer comparações.

“Ainda estamos no começo da doença, em fase de curva achatada, em que não se sabe quando e como vai acabar a pandemia. Depois que terminar é que poderemos ver o total de mortes e comparar”, afirma Cabral. Especialistas têm apontado ainda indícios de subnotificação de mortes em algumas regiões do País, motivada pela falta de testes e atraso nos diagnósticos.

Descoberta em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, a covid-19 chegou ao Brasil provavelmente no fim de janeiro. O primeiro caso oficial de um brasileiro contaminado pelo coronavírus Sars-CoV-2 foi registrado em 26 de fevereiro. Em quase quatro meses, já há mais de 1 milhão de infectados – equivalente a 0,5% da população brasileira. A primeira morte foi registrada em 17 de março: um morador de São Paulo, de 62 anos, com outros problemas de saúde.

Desde então, já morreram mais pessoas em decorrência de covid-19 que por algum tipo de isquemia no coração, como enfarte, entre janeiro a maio de 2019: 46,5 mil, segundo dados do Ministério da Saúde. Doenças relacionadas ao sistema circulatório, como enfartes, AVCs e hipertensão arterial são a principal causa de morte no País.

A covid-19 causou mais vítimas no Brasil em 95 dias que as armas de fogo mataram em 2017. Naquele ano houve o maior número de ocorrências do tipo nas últimas três décadas: foram 48,4 mil óbitos (inclui assassinatos e suicídios). A violência é um dos problemas sociais que mais preocupam a população, tanto pela agressão quanto pela imprevisibilidade.

Em comparação com as mortes em acidentes de trânsito, aéreos e navais (30 mil, em 2019), a covid-19 matou quase o dobro. Tanto as mortes por armas quanto os acidentes são classificados como óbitos motivados por “causas externas”, no registro de letalidade no Brasil. Isso é: não provocadas por doenças.

As causas externas formam o quarto grupo com mais óbitos do País: 140 mil no ano passado. Entram na classificação, também, a violência policial, agressões, conflitos, explosões, mortes em hospitais por complicações, entre outras. Se somarmos, para comparação, as vítimas fatais desse grupo de março a junho do ano passado – período aproximado da pandemia atual –, foram 46 mil óbitos. Menos, portanto, do que a covid-19 no mesmo período.

Grandes tragédias. No Brasil, a soma das mortes de 17 tragédias recentes não chega nem perto do que a covid-19 matou. Juntas, elas vitimaram 3.537 pessoas. A conta reúne os mortos soterrados com os rompimentos de barragens em Brumadinho (2019) e Mariana (2015); os de quatro acidentes aéreos – dois da TAM em Congonhas (1996 e 2007), da Gol (na Serra do Cachimbo, em 2006) e do time da Chapecoense (na Colômbia, em 2016); os de três deslizamentos e das enchentes, no Rio (2011), em Caraguatatuba (1967) e Santa Catarina (2008); os dos desabamentos, incêndios e explosões dos edifícios Joelma (1974) e Andraus (1972), da Boate Kiss (2014), do Gran Circus (1961), da Vila Socó, em Cubatão (1984) e do Plaza Shopping (1996); do naufrágio do Bateau Mouche (1989) e no massacre do Carandiru (1992).

Nos últimos quatro anos, 1,3 milhão de pessoas morreram anualmente no País. A principal causa foram doenças do aparelho circulatório: 360 mil em 2019, em que entram enfartes, problemas decorrentes de hipertensão arterial, AVCs, entre outras. O grupo dos tumores, do câncer, está no segundo lugar, seguido pelas doenças respiratórias – em que entram as pneumonias e as gripes, como a influenza tipo H1N1. Foi essa última que protagonizou a pior pandemia gripal da história, em 1918, que ficou conhecida como a “gripe espanhola” – que não foi originada e difundida pela Espanha, apesar do nome.

No ano passado, enfartes mataram 116 mil – um terço do total de óbitos do grupo de doenças do aparelho circulatório. Mas se isolar o total de casos de janeiro a junho, são 56,8 mil óbitos em seis meses, quantidade que a covid-19 deve ultrapassar antes de fechar o quarto mês no País.

Mundo em transformação

“Não tenho dúvidas de que essa epidemia é o grande marco do século 21. Ela nos mostra a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento.”

Nísia Trindade,

SOCIÓLOGA E PRIMEIRA MULHER A PRESIDIR A FIOCRUZ EM 120 ANOS

Trabalho árduo

“Foi um renascimento. Consegui me recuperar da doença graças a Deus e aos médicos. Foi um trabalho de todos, que me deu a segunda chance de viver.”

Sylvio Romero Cavalcanti,

ENGENHEIRO NO RECIFE, DE 73 ANOS

Desigualdade

“As mortes em casa que a gente atende são todas nas periferias. Você não vê isso em bairros da classe média alta. As classes pobres estão mais expostas.”

Não identificado a pedido dele,

MÉDICO DO SAMU EM SÃO PAULO