Correio braziliense, n. 20913, 26/08/2020. Mundo, p. 12

 

OEA veta brasileiro e abre crise interna

26/08/2020

 

 

A decisão do uruguaio Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), de não renovar o mandato do brasileiro Paulo Abrão no posto de secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) abriu grave crise na entidade. Alinhada aos governos de Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil), a OEA anunciou ter recebido “dezenas” de denúncias funcionais contra Abrão, que ocupava o cargo desde 27 de julho de 2016 e pleiteava novo mandato para o período 2020-2024. Presidente da CIDH, o mexicano Joel Hernández afirmou à agência France-Presse que continua considerando Abrão secretário-executivo. “Abrão é o funcionário responsável pela Secretaria-Executiva. A nomeação da subsecretária, Claudia Pulido, visa exclusivamente a atender às questões de caráter administrativo”, assinalou Hernández.

Mais cedo, por meio de extenso comunicado, a CIDH expressou o mais “profundo repúdio” e seu alarme “diante de um sério ataque contra sua independência e autonomia”. A nota lembra que a Comissão decidiu por unanimidade renovar o mandato de Abrão, em sessão realizada entre 8 e 9 de janeiro passado, no México. Em 15 de agosto, Almagro notificou a CIDH, “sem consulta prévia”, de sua decisão. De acordo com a Comissão, isso constitui “um flagrante desrespeito à sua independência e autonomia, buscando a separação de fato do secretário-executivo, e anular a decisão de renovação adotada oito meses antes pela CIDH”.

Também por meio de comunicado, Almagro explicou que, “infelizmente, nenhum progresso foi feito no processo de designação do secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), devido à existência de dezenas de denúncias funcionais apresentadas aos mecanismos institucionais responsáveis pela garantia e pela promoção dos direitos dos funcionários da OEA e por tramitar, neste caso, as queixas reincidentes sobre possíveis violações de direitos”. O secretário-geral classificou de “completa falta de ética” e algo “digno de repúdio” a tentativa de tentar provocar “confusão a respeito do que constitui a responsabilidade e a prestação de contas funcional individual de um ou mais funcionários, e do que constitui a autonomia da CIDH”.

Relatórios

A não renovação do mandato do brasileiro teria sido decidida por Almagro com base em dois relatórios: um preparado pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral da OEA e outro elaborado pela “ombudsperson” da organização, Neida Pérez. Fontes da OEA confirmaram à France-Presse que Neida recebeu mais de 60 denúncias contra Abrão, que incluem a “manipulação de concursos e contratações”. “Essas denúncias não são impedimento para que Almagro renove o contrato do secretário-executivo Abrão”, protestou o presidente da CIDH.

Hernández garante que estava a par das queixas feitas à ombudsperson, com quem o plenário da Comissão se reuniu em outubro. Ele acrescentou que, desde o ano passado, Abrão seguia as recomendações. “Não podemos aceitar que um documento apresentado cinco dias antes do fim do contrato sirva de pretexto para não concedê-lo.”

O conteúdo do relatório de Neida Pérez recebeu a classificação de “confidencial”. “É inadmissível que se tente usar um relatório institucional sigiloso da Ouvidoria ou a informação de que se inicia uma investigação administrativa como base para decidir sobre a renovação administrativa da Secretaria Executiva da CIDH, em clara violação às reiteradas regras do sistema”, afirma a Comissão. Ao fim do comunicado, a CIDH reitera o voto de confiança na renovação do mandato de Abrão e expressa a disposição de dialogar com Almagro e com todos os órgãos da OEA.

Até o fechamento desta edição, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, e o Partido dos Trabalhadores (PT), não tinham se pronunciado sobre o assunto. O Correio tentou contato com Abrão por e-mail e pelas redes sociais, mas não obteve resposta. O presidente Jair Bolsonaro e o Ministério das Relações Exteriores também preferiram o silêncio. Diretor executivo da Human Rights Watch para as Américas, José Miguel Vivanco denunciou que a decisão de Almagro representa “um grave retrocesso na prática da OEA e mina a autonomia da CIDH”. “A decisão de Almagro danifica a credibilidade da CIDH como organismo independente.”

A Comissão Permanente de Direitos Humanos da Nicarágua (CPDH) — país onde Abrão trabalhou na coleta de violações dos direitos humanos — enviou carta a Almagro pedindo que OEA reconsidere sua decisão. “Esta posição não contribui para o bom funcionamento da institucionalidade e dá descontinuidade aos processos iniciados para a defesa dos direitos humanos.”