Valor econômico, v. 21, n. 5082, 09/09/2020. Brasil, p. A3

 

Alimentos pesam, apesar de inflação comportada

Rafael Rosas e Bruno Villas Bôas

09/09/2020

 

 

Alimentação no domicílio avançou 10,1% em um ano e ganhou importância no consumo das famílias

Os índices de inflação têm apresentado uma alta de preços “comportada” nos últimos meses, fruto de uma clara retração econômica causada pelo isolamento social. Hoje, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulga o IPCA de agosto e, até julho, a inflação acumulada pelo índice em 2020 é de 0,46%. No Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), divulgado ontem pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o Índice de Preços ao Consumidor acumula alta de 1,58% no ano até agosto.

Mas essa faceta “comportada” não vem sendo notada por muitos consumidores. Fatores como o avanço de preços de produtos mais consumidos na pandemia, como os alimentos, e a queda de preços de produtos menos consumidos ou até mesmo não consumidos devido ao isolamento social - como passagens aéreas - têm causado um descasamento entre os índices de inflação e a percepção do consumidor, que hoje compra alimentos 10,1% mais caros que há um ano.

Para Eduardo Zilberman, professor da PUC-Rio, a atual distância entre as prateleiras e os índices de preços está diretamente relacionada com mudanças de hábitos de consumo durante a pandemia. Segundo ele, bens mais demandados sofreram aumento de preços nas últimas semanas por diferentes fatores. “As famílias passaram a consumir mais alimentos dentro de casa na pandemia. Mas esse peso maior no orçamento das famílias não é acompanhado nos índices de preços, que são formados a partir de cestas de consumo de anos anteriores.”

O IPCA, a inflação oficial do país, é medida com base na cesta de consumo das famílias de 2017/2018. Essa cesta é atualizada apenas a cada cinco a dez anos e continua, portanto, sendo a referência para o IPCA durante a pandemia. Se no “mundo real” os alimentos comprados no supermercado passaram a ser mais consumidos pelas famílias, eles ainda respondiam 13,5% no IPCA de julho, praticamente o mesmo do que o registrado em fevereiro (14,1%).

“Essa sensação de alta dos preços pelos consumidores é, portanto, completamente explicável por causa da covid-19”, diz Zilberman. “Com a reabertura da economia, vamos precisar acompanhar como os preços passam a se comportar, principalmente os de serviços”, acrescenta o professor.

Para André Braz, coordenador do IPC do Ibre/FGV, itens como habitação e vestuário estão com taxas de inflação muito baixas em 2020 e muitos serviços livres praticamente não têm subido. Em todos os casos, a queda de consumo durante a pandemia é responsável por segurar os preços. “Esses itens servem de âncora para a inflação”, diz ele. Em compensação, lembra, os preços de alimentação no domicílio avançam na casa dos 10% em 12 meses. “E a inflação percebida é muito ligada a alimentos”, acrescenta.

Braz afirma que a pandemia levou a uma perda maciça de empregos, o que reduziu a diversificação de cestas de consumo, principalmente das classes mais empobrecidas, deixando os gastos muito concentrados em alimentos, “para garantir o sustento da família”. “Muita coisa que caiu de preço não faz parte da realidade dos mais humildes e exatamente o que está na realidade dos mais pobres é o que mais avançou”, ressalta.

Braz lembra ainda que, no caso da classe média, também há a percepção de aumento dos produtos consumidos, mas a renda antes destinada para atividades como viagens e outras formas de lazer acaba sendo apropriada como poupança. Ele destaca que a taxa de captação de poupança aumentou bastante porque o dinheiro que era destinado a despesa com lazer e consumo com duráveis acabou virando poupança. “Isso porque a classe média não sabe exatamente quais serão os efeitos da pandemia em sua própria atividade, porque muita gente não perdeu o emprego, mas ainda pode perder. Então o indivíduo acumula um pouco exatamente para driblar melhor os desafios dos meses à frente.”

Na semana passada, o IBGE mostrou, durante a divulgação do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, que a taxa de poupança bruta subiu para 15,5% do PIB entre abril e junho, frente a 13,7% do PIB em igual período de 2019. Foi a primeira vez que a taxa subiu num segundo trimestre desde 2013. O avanço levou a poupança a ultrapassar a taxa de investimento, que ficou em 15% do PIB entre abril e junho. Foi a primeira vez que a taxa de poupança superou a de investimento desde o segundo trimestre de 2017 e, antes disso, só em 2008.

Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos, acrescenta que produtos eletrônicos também acabaram com preços pressionados durante o período de isolamento social. Segundo ele, é um efeito combinado de maior demanda dos consumidores com encarecimento do câmbio.

Dados do IPCA-15, prévia da inflação, mostram aumento de 10,68% no preço do televisor no acumulado do ano até agosto. No caso do computador pessoal, esse aumento foi de 15,74%. Como são compras mais pontuais, porém, a percepção dos consumidores sobre a flutuação desses preços pode ser menos nítida. “Gastos que as famílias tinham com serviços e viagens, por exemplo, foram reduzidos e acabaram sendo direcionados para esses itens, necessários duramente o isolamento social”, diz o economista, acrescentando que parte do aumento desses preços pode ter a ver a com a renda do auxílio emergencial.

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Bolsonaro pede margem de lucro perto de zero a mercados e cogita facilitar importação de arroz

Fabio Murakawa

09/09/2020

 

 

Presidente diz que fez apelo ao setor, mas que “ninguém vai usar a caneta Bic para tabelar nada”

O presidente Jair Bolsonaro disse ontem ter feito “um apelo” aos donos de supermercado para que a margem de lucro sobre os produtos essenciais seja próximo de zero. A preocupação de Bolsonaro com a alta dos alimentos da cesta básica pode levar o governo a suspender a tarifa de importação do arroz de países de fora do Mercosul.

Amanhã à tarde, Bolsonaro recebe o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Sanzovo Neto, ao lado do ministro Paulo Guedes.

O presidente pediu “patriotismo” aos empresários na semana passada, depois que a Abras emitiu nota relatando uma pressão dos preços dos alimentos no atacado.

Ontem, ele tocou novamente no assunto durante encontro com médicos pró-cloroquina, no Palácio do Planalto. O comentário surgiu quando Bolsonaro disse que, se não fosse o auxílio emergencial pago a pessoas vulneráveis, “poderíamos ter seríssimos problemas sociais no Brasil”.

“Tenho conversado com alguns donos de grandes redes de supermercados desde a semana passada, com o presidente da associação também dos supermercados, fazendo um apelo. Nós criamos aí o auxílio emergencial para exatamente poder dar oportunidade para o pessoal que perdeu emprego comer”, afirmou. “Então, tenho apelado para eles, ninguém vai usar a caneta Bic para tabelar nada, não existe tabelamento, mas pedindo para eles que o lucro desses produtos essenciais nos supermercados seja próximo de zero.”

A alta do preço do arroz, e da cesta básica em geral, mexe diretamente com o público mais pobre, no qual a popularidade do presidente avançou nos últimos meses devido ao auxílio emergencial.

“Outras medidas estão sendo tomadas pelo ministro da Economia bem como pela ministra Tereza Cristina para nós, o mais rápido possível, darmos uma resposta a esses preços que dispararam no supermercado”, afirmou.

Segundo uma alta fonte do Planalto, o presidente avalia suspender a Tarifa Externa Comum (TEC) aplicada ao produto importado dos países de fora do Mercosul. Hoje, essa tarifa está em 12% para o produto beneficiado e 10% para arroz com casca. A medida tem forte oposição do setor agrícola.

Segundo essa fonte, o assunto será decidido antes da reunião do Comitê-Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio Exterior (Camex), na sexta-feira.

Bolsonaro disse também que, se os produtores tivessem ficado em casa, obedecendo a recomendação de isolamento social, os preços estariam ainda mais altos e o país viveria um caos social.

Ele disse ainda acreditar que com a nova safra de arroz, a “ser colhida em dezembro, janeiro, [...] a tendência é normalizar o preço”. Porém, 70% da produção nacional de arroz é no Rio Grande do Sul, e a colheita só começa em fevereiro. Os Estados de Mato Grosso do Sul e Goiás começam suas colheitas em janeiro, mas com impacto menor sobre as cotações do produto.

Mais cedo, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, havia sido questionada pela “repórter mirim” Esther Castilho, de 10 anos, sobre se os preços do arroz cairiam.

“O arroz não vai faltar”, respondeu a ministra. “Agora ele tá alto, mas nós vamos fazer ele baixar. Se Deus quiser, vamos ter uma supersafra ano que vem.”

A menina foi levada pelo presidente à sala onde ocorreria uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. E foi incentivada por ele a fazer perguntas aos ministros, algumas das quais ele mesmo sussurrava no ouvido da criança.

Nessa “entrevista”, o ministro da Economia, Paulo Guedes, previu que os preços do gás de cozinha cairão até 30% após a aprovação da Lei do Gás, atualmente em tramitação no Congresso.

Esther perguntou se o preço do gás iria cair, mas ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que passou a bola ao colega.

“Pergunta para o Paulo Guedes”, respondeu Albuquerque.

Guedes, por sua vez, previu um “choque de energia barata” com a aprovação da lei. “Com a ajuda do ministro Bento, nós estamos aprovando a lei do gás natural. E aí vai haver um choque de energia barata. Esperamos que o gás caia, 20%, 30% pelo menos”, afirmou.