O Estado de São Paulo, n.46267, 20/06/2020. Metrópole, p.A20

 

País passa de 1 milhão de infectados e a covid-19 já está em 85% das cidades

Giovana Girardi

20/06/2020

 

 

É o que apontam os dados do consórcio da imprensa; o Estado de São Paulo ultrapassou 200 mil registros. Levantamento dos relatos municipais, feito pelo projeto de dados Brasilio. indica que 98% da população do Pais está em áreas onde já circula o novo coronavirus

O Brasil ultrapassou ontem a marca de 1 milhão de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, 114 dias após o registro do primeiro caso no País, em 26 de fevereiro. Em menos de quatro meses, a covid-19 chegou a 4.742 cidades (85% do total do País), que abrigam 98% da população brasileira. De acordo com o levantamento do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL, são 1.038.568 contaminações e 49.090 mortes. No mundo, somente os EUA têm dados piores. O número oficial de infectados, porém, é inferior ao dado real, por causa da subnotificação. O vírus avança pelo interior do País. Até quarta-feira, 70,51% dos municípios com até 10 mil habitantes já tinham casos de covid-19. “Nós já passamos de 1 milhão de casos, mas em algumas cidades a epidemia está chegando só agora, como no Centro-Oeste”, afirma Diego Xavier, epidemiologista do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz.

O Brasil superou ontem a marca de 1 milhão de infectados com o novo coronavírus. Passados 114 dias desde o primeiro caso, hoje praticamente toda a população brasileira está em risco de exposição ao vírus. Somente o Estado de São Paulo soma mais de 200 mil casos. A covid-19 já chegou a 85% dos municípios do País (4.742), que respondem por 98% de toda a população, de acordo com levantamento do projeto de transparência de dados Brasil.io.

Desde 26 de fevereiro, o País já somou 1.038.568 contaminações (55.209 nas últimas 24 horas) e 49.090 mortes (1.221 relatadas ontem), conforme o levantamento do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G 1, O Globo, Extra, Folha eU OLc omas Secretarias Estaduais de Saúde. O consórcio surgiu quando o governo sugeriu mudara sistemática de divulgação de dados – ontem, o ministério também relatou 1 milhão de infectados.

O número, porém, é inferior ao real, por subnotificação. Estudo epidemiológico conduzido pela Universidade Federal de Pelotas, com modelo parecido com o de uma pesquisa eleitoral, observou a ocorrência de 6 pessoas infectadas para cada uma oficialmente identificada. O dado é válido para as 133 cidades onde foi feita a pesquisa, pondera o epidemiologista Pedro Hallal, coordenador do estudo, e não deve ser extrapolado para o País. “Mas certamente já estamos na casa dos milhões. Podem ser 5, 6, 9.”

A epidemia vem há algumas se manasse interiorizando ejá se propaga mais rápido nessas regiões do que nas capitais, como revelou o Estadão no início de junho. Outro levantamento, feito apedido da reportagem pelo grupo MonitoraCovid-19, da Fiocruz, mostra que em Estados como São Paulo, Pernambuco e Amazonas, cujas capitais explodiram de casos logo no começo da pandemia, o interior agora já registra mais novos casos por dia do que as cidades de São Paulo, Recife e Manaus.

Até quarta-feira, de acordo com o monitoramento, 70,51% dos municípios com até 10 mil habitantes já tinham casos de covid-19. Entre aqueles com 10 mi la 20 mil habitantes, eram 91%, e praticamente todas as cidades maiores que isso já tinham registro da doença. “Nós já passamos de 1 milhão de casos, mas em algumas cidades a epidemia está chegando só agora – como no Centro-Oeste”, afirma Diego Xavier, epidemiologista do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz. “Ainda é só o começo e não sabemos onde vai parar”, diz.

O pesquisador alerta para o risco de isso acontecer ao mesmo tempo em que há relaxamento das medidas de isolamento, o que deve levar a uma segunda onda de casos nas capitais. “A saúde funciona em rede, não de forma isolada. Não é porque um município está com poucos casos que pode reabrir. Os pacientes das cidades menores vão procurar atendimento nas maiores. Se a doença subir de novo nas capitais, com a chegada ao interior, os pacientes de lá vão precisar dos hospitais das cidades grandes, e o risco de as redes colapsarem é real.”

Níveis. “O País está em vários momentos da epidemia, dependendo do Estado onde se olha e, mesmo dentro do Estado, cada cidade pode estar de um jeito. Os Estados Unidos cometeram o erro de falar que a curva do país estava caindo porque os casos de Nova York estavam em queda, mas os outros Estados estavam subindo”, complementa Marcia Castro, professora de Demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Universidade Harvard.

Xavier cita a situação do Estado de São Paulo, que iniciou o processo de reabertura no início de junho, mas tem batido recordes de casos e óbitos nos últimos dias. O interior, que respondia por 10,75% dos casos há dois meses, agora já responde por 27% do total. Cidades como as da região de Barretos, no norte do Estado, tiveram forte aumento de casos, e o governo decidiu rebaixá-las para a fase 1 do plano, a mais restritiva. Mas os prefeitos recorreram à Justiça para manter o comércio aberto. Mesmo com o indeferimento, pessoas estão indo às ruas.

“No estágio em que o Brasil está, era para estarmos com portas fechadas. Mas estamos em reabertura gradual, desafiando o vírus, promovendo o encontro de infectados e pessoas suscetíveis”, diz Hallal. “Precisava ter uma ‘gordurinha’ para absorver esse aumento que vai ocorrer. Municípios que são referência não podem pensar só neles”, afirma Marcia.

Para a epidemiologista Maria Amélia Veras, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, o Brasil chegar a 1 milhão de casos era algo esperado considerando as “características do nosso modo de viver e de lidar com a doença”. Por modo de viver ela se refere às milhares de habitações que abrigam muitas pessoas, sem condições de isolamento ou até hábitos de higiene. “São populações que vivem a necessidade de conquistar o pão a cada dia, não têm segurança alimentar, de moradia. É um contingente muito grande submetido a condições que são muito desfavoráveis para o controle de doença de transmissão respiratória, que exige que um coletivo se comporte de uma determinada maneira – não somente as pessoas de modo individual”, afirma.

Mas isso é só uma parte da história. “O Brasil respondeu mal enquanto país ao não ter um entendimento da gravidade do problema, ao não dar uma resposta coordenada adequada”, complementa Maria Amélia. As mensagens contraditórias passadas em um primeiro momento pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro, e a disputa com governadores e prefeitos, só piorou a capacidade de resposta.

Olhando em retrospectiva, é fácil ver exatamente o momento em que o Brasil perdeu o controle da doença. A curva de casos no País evoluiu no início da pandemia de modo lento, praticamente na horizontal. Quase todo o País tinha parado, com Estados e municípios decretando quarentena. Foi assim até o fim de abril. Nas semanas seguintes, a curva se inverteu, assumiu comportamento mais vertical, o que indica a velocidade na transmissão da doença.

A mudança de ritmo ocorreu pouco tempo após Luiz Henrique Mandetta, forte defensor do isolamento social, deixar o cargo de ministro da Saúde, em 16 de abril. Quando foi exonerado, após conflitos com Bolsonaro, havia cerca de 30 mil casos confirmados no País. Seu sucessor, Nelson Teich, ficou no cargo por menos de um mês. Em 15 de maio, data de sua saída, já eram 220 mil os contaminados. Daí, foi preciso pouco mais de um mês até 1 milhão. A pasta hoje está sob comando interino do general Eduardo Pazuello.

Mundo. Além do Brasil, só os Estados Unidos ultrapassaram essa marca. Lá a evolução foi mais rápida. O primeiro caso foi registrado no dia 21 de janeiro. Eles superaram 1 milhão de casos em 28 de abril e 2 milhões em 10 de junho. Os EUA chegaram a 2,185 milhões ontem, com mais de 118 mil mortos.

“O perigo de reabrir quando ainda há ocupação alta nos hospitais é haver nova onda na capital ao mesmo tempo em que a demanda se torna mais alta, com pacientes de outros municípios, que dependem da capital para ter acesso a leito.”

Márcia Xavier

ESPECIALISTA EM SAÚDE GLOBAL

DA UNIVERSIDADE HARVARD