Valor econômico, v. 21, n. 5069, 20/08/2020. Política, p. A18

 

Cármen Lúcia condena elaboração de dossiê

Luísa Martins

Isadora Peron

20/08/2020

 

 

Aras saiu em defesa do governo

A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia votou ontem pela suspensão de qualquer iniciativa do Ministério da Justiça (MJ) que produza ou compartilhe dados sobre a vida pessoal de cidadãos, funcionários públicos e professores. Cármen Lúcia disse ver indícios de desvio de finalidade no ato do governo federal de coletar informações sobre opositores políticos. Os demais ministros vão se manifestar na sessão de hoje.

O Supremo começou a julgar ontem ação em que o partido Rede Sustentabilidade questiona uma suposta perseguição do governo a servidores que apoiaram o movimento antifascista em protestos contra o presidente Jair Bolsonaro. A alegação do ministro André Mendonça, titular do MJ, é a de que são relatórios de inteligência, e não procedimentos de caráter investigativo.

Em um duro voto, Cármen disse que a elaboração de informes sobre as escolhas políticas dos cidadãos remonta ao período da ditadura militar. A prática, segundo ela, “não é nova neste país, e não é menos triste termos que voltar a esse assunto quando se acreditava que era apenas uma fase negra de nossa História”.

Ela ainda criticou Mendonça por ter oficialmente informado que “não solicitou” os relatórios, tomando conhecimento deles apenas por reportagens veiculadas na imprensa, para depois tê-los disponibilizado ao Supremo. Os documentos trazem um compilado de publicações públicas feitas pelos servidores antifascistas nas redes sociais.

Apesar de deferir a liminar solicitada pelo Rede para impedir a produção dos relatórios, a ministra não atendeu o pedido para que a Polícia Federal (PF) abrisse um inquérito criminal para apurar o caso. No entanto, foi enfática ao dizer que “o Estado não pode ser infrator, muito menos em direitos fundamentais”, como a liberdade de expressão, de reunião e de associação.

“Determinar-se judicialmente o impedimento de qualquer comportamento de coleta de dados secretos da vida de quem quer que seja, fora dos suportes constitucionais e sem direito a contraditório, não constitui demasia do sistema constitucional, apenas cautela necessária para o caso”, disse ela.

Segundo a ministra, não é legítima a alegação de que os relatórios são mera atividade de inteligência. O ato do MJ, continua ela, “caracteriza, sim, desvio de finalidade, de modo que concluo presentes os requisitos para deferir medida cautelar”.

Antes de Cármen proferir seu voto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou pela primeira vez sobre os dossiês - e saiu em defesa do governo. Ele é um dos principais cotados para ocupar a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta em novembro, no STF.

Aras disse que o Ministério Público “não admite que governos espionem opositores políticos”, mas considerou não ser o caso do ato do MJ. Segundo o procurador-geral, houve um “exagero” nas críticas à pasta chefiada por Mendonça, já que os dados foram reunidos a partir de fontes públicas, com o objetivo de avaliar “cenários de risco” diante da intensificação dos protestos.

Um calhamaço de postagensde servidores nas redes sociais, diz o PGR, não configura perseguição. “Relatórios de inteligência não podem ser confundidos com investigações criminais.”

“Da maneira como foi sistematizado, os dados poderiam ser copiados por qualquer um. As informações foram coletadas em atividade típica de inteligência, e não em nível inquisitorial”, disse ele, classificando o caso como um “alarme falso”.

Aras lembrou que a Constituição permite a livre manifestação, mas disse que “quando pessoas armadas se reúnem em protesto político, a segurança pública e a segurança nacional podem estar em risco” - sendo assim, prosseguiu, é “compreensível que os órgãos de inteligência permaneçam atentos”.

Na mesma linha, o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), José Levi, disse que o plano do MJ é instituir uma “estratégia nacional de inteligência de segurança pública” dentro dos limites legais. “A União rejeita toda e qualquer forma de autoritarismo ou de totalitarismo, aí incluído o fascismo”, afirmou.