Valor econômico, v. 21, n. 5068, 19/08/2020. Política, p. A18

 

Pandemia aumenta preocupação com abuso de poder nas eleições

Malu Delgado

19/08/2020

 

 

Ministros do TSE e advogados eleitorais preveem um aumento de denúncias de casos de abuso do poder político e econômico por conta do estado de calamidade pública

Ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e advogados eleitorais preveem um aumento de denúncias de casos de abuso do poder político e econômico nessas eleições municipais por conta do atípico estado de calamidade pública decretado com a pandemia de covid-19. A condição sanitária excepcional autoriza, por exemplo, que prefeitos - inclusive os que vão tentar a reeleição - possam distribuir bens, como cestas básicas, ou equipamentos de saúde (máscaras, álcool em gel, EPIs) para o combate à doença. O tema foi debatido ontem em painel “Abuso de poder nas eleições em tempos de pandemia”, no VII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral.

“Não há nenhuma exceção que autorize o uso promocional de condutas administrativas que serão adotadas. Se ocorrer, pode haver cassação do diploma do beneficiado”, avisou o ministro do TSE Carlos Mário Velloso Filho. Para o magistrado, a atual legislação fornece ferramentas suficientes para punição e vedação de comportamentos políticos abusivos. “As denúncias de abuso de poder político, sobretudo de prefeitos que estão no poder e buscam a reeleição, prometem ocorrer de forma mais intensa”, previu Velloso Filho.

Já o advogado Carlos Enrique Caputo Bastos alertou para o “perigo de utilização indevida de publicidade para promoção indevida de candidaturas”. Em tempos de pandemia, afirmou, o que deveria ser planejamento de políticas públicas poderá ser desvirtuado, no pleito, para alavancar tentativas de reeleição. “Teremos máscaras vermelhas e azuis? Os candidatos teriam esse disparate de pintar máscaras para favorecer candidaturas? Não imagino que isso será utilizado na doação de equipamentos médico-hospitalares, mas precisamos estar atentos a essas questões, que são todas muito delicadas”, provocou o advogado.

A Lei de Inelegibilidades, de 1990, modificada em 2010 pela Lei da Ficha Limpa, observou o ministro Velloso Filho, oferece “ferramental suficiente para o combate a abusos que certamente virão a ocorrer”. Há uma discussão no direito sobre potencialidade do dano causado por um ato de abuso de poder versus a gravidade do mesmo, mas, segundo o ministro Carlos Velloso Filho, o artigo 19 da Lei Complementar 64/1990 não deixa dúvidas de que a conduta do infrator precisa repercutir na normalidade e na legitimidade do pleito.

O parágrafo único do artigo citado pelo ministro do TSE estabelece que “investigações jurisdicionais” serão realizadas com “objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”.

Segundo o ministro, alguns “conceitos fluidos” do direito trazem vantagens e desvantagens. Ele explicou que até 2010 havia jurisprudência considerando que a normalidade e a legitimidade da eleição só estariam comprometidas por atos de abuso de poder com potencial de alterar o resultado do pleito. Porém, com a Lei da Ficha Limpa, o entendimento jurisprudencial se alterou: para a configuração do ato abusivo não será considerada apenas a potencialidade, mas a gravidade das circunstâncias.

Apesar de o foco do TSE ter se deslocado do impacto do ato sobre o resultado do pleito para a gravidade da conduta, essa visão não é pacificada no TSE, reconheceu o ministro. “É uma conduta normal? Tem gravidade? Essa tarefa [de julgar] não é fácil. Quem acompanha as decisões do TSE sabe que os julgamentos são sempre 4 a 3”, explicou.

O ex-ministro do TSE Marcelo Ribeiro, também participante do painel, abordou a questão do abuso do poder religioso. Ele disse ser contra a criação de alguma nova legislação sobre o tema. “É inadequado que se crie o abuso do poder religioso, numa hora dessa, porque passaria por certo ativismo judicial criar uma figura não prevista na Constituição”.

Para Ribeiro, agremiações religiosas que detêm concessões de rádio e televisão, por exemplo, podem ser punidas por uso indevido dos meios de comunicação, caso usem a religião para impulsionar determinadas candidaturas. Ele citou como exemplos positivos algumas experiências dos Estados Unidos, em que igrejas podem se envolver politicamente em campanhas, mas se assim procederem perdem o direito a isenções fiscais. Outra vedação interessante, citou, seria a previsão de inelegibilidade e/ou quarentena para dirigentes eclesiásticos disputarem cargos eletivos.

O ex-ministro argumentou que, no direito, não é recomendável “alargar conceitos”. Ele citou que o país saiu de uma situação de impunidade e passou para o punitivismo exagerado com a Lei da Ficha Limpa.