O Estado de São Paulo, n.46264, 17/06/2020. Política, p.A5

 

Celso fala em ‘resistir com armas legítimas’

Rafael Moraes Moura

17/06/2020

 

 

Em sessão da Segunda Turma, decano diz ser ‘inconcebível resíduo de autoritarismo’

Recado. Sem citar Bolsonaro, Celso de Mello disse que discurso ‘não é próprio de estadista’

O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, disse ontem ser “inconcebível” que ainda haja resíduo de autoritarismo no Estado brasileiro. Relator do inquérito que investiga se o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal, Celso afirmou que é preciso resistir “com as armas legítimas da Constituição e das leis do Estado brasileiro”. O magistrado observou, ainda, que “sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres neste país”.

Em um discurso endereçado a Bolsonaro, ainda que sem mencioná-lo explicitamente, Celso criticou a postura “atrevida” de não se cumprir ordens judiciais. No mês passado, o presidente da República disse que não entregaria seu celular, mesmo se houvesse decisão da Justiça nesse sentido. O pedido de partidos da oposição para apreender o aparelho do presidente, no entanto, acabou arquivado pelo próprio ministro.

“Esse discurso (de não cumprir decisões judiciais) não é um discurso próprio de um estadista comprometido com o respeito à ordem democrática e que se submete ao império da Constituição e das leis da República. É essencial relembrar a cada momento as lições da história, cuja advertência é implacável, como assinalava o saudoso ministro Aliomar Baleeiro: ‘Enquanto houver cidadãos dispostos a submeter-se ao arbítrio sempre haverá vocação de ditadores’. É preciso resistir, mas resistir com as armas legítimas da Constituição e das leis dos Estado brasileiro e reconhecer na independência da Suprema Corte a sentinela das liberdades”, disse o decano.

A fala do ministro ocorreu durante a sessão da Segunda Turma, quando integrantes do STF saíram em defesa da democracia, da Constituição e da atuação de juízes, além de condenarem os ataques ao tribunal, em meio à escalada de tensões na relação com o Planalto.

Ao longo das últimas semanas, o Supremo tomou uma série de decisões que contrariaram os interesses do Palácio do Planalto, como a suspensão da nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal, a proibição da expulsão de diplomatas venezuelanos, a limitação do alcance do salvo-conduto a gestores públicos e o entendimento de que prefeitos e governadores têm autonomia para tomar medidas contra o coronavírus.

Coube à presidente do colegiado, ministra Cármen Lúcia, abrir a sessão demonstrando, em suas palavras, “preocupação” com o cenário nacional. “Atentados contra instituições, contra juízes e contra cidadãos que pensam diferente voltam-se contra todos, contra o País. A nós, cabe manter a tranquilidade, mas principalmente a coragem, a dignidade de continuar a honrar a Constituição, cumprindo a obrigação que nos é expressamente imposta de guardá-la para garantir a sua aplicação a todos e por todos. Constituição não é um artifício e direitos não são de menor importância, são conquistas”, observou a ministra.

“Que não se cogite que a ação de uns poucos conduzirá a resultado diferente do que é a convivência democrática. E não se cogite que se instalará algum temor ou fraqueza nos integrantes da magistratura brasileira”, completou Cármen.

O ministro Edson Fachin concordou com a colega de Corte. “Temos de sair da crise sem sair da democracia. A saúde da democracia é também a saúde das instituições.”

Tensão. As relações do STF com o Palácio do Planalto também ficaram estremecidas após a declaração do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que disse na reunião ministerial de 22 de abril que, por ele, “botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”. No último domingo, Weintraub furou o bloqueio na Esplanada dos Ministérios e se encontrou com manifestantes em frente ao Ministério da Agricultura. Ao conversar com o grupo, o ministro disse: “Eu já falei a minha opinião, o que faria com esses vagabundos”.

No sábado, um grupo de 20 manifestantes bolsonaristas soltou fogos de artifício em direção à sede do STF, enquanto xingavam ministros do tribunal.

Democracia

“Temos de sair da crise sem sair da democracia. A saúde da democracia é também a saúde das instituições.”

Edson Fachin

MINISTRO DO SUPREMO