Correio braziliense, n. 20906, 19/08/2020. Mundo, p. 10

 

Dia para esquecer

Rodrigo Craveiro 

19/08/2020

 

 

A pouco menos de três meses das eleições de 3 de novembro, o presidente norte-americano, Donald Trump, teve ontem duas notícias adversas. Um relatório bipartidário do Comitê de Inteligência do Senado, controlado pelos republicanos, concluiu que Paul Manafort — chefe da campanha do magnata em 2016 — teve contatos repetidos com a inteligência russa e representou uma “grave ameaça de contra-espionagem” devido à interação com o Kremlin. Com pouco mais de 950 páginas, o documento identifica Konstantin V. Kilimnik como um “oficial de inteligência russa” contratado por Manafort. Segundo o relatório, o governo de Vladimir Putin empreendeu uma extensa campanha para tentar sabotar as eleições de 2016 e ajudar Trump a chegar à Casa Branca.

Manafort e Kilimnik teriam articulado narrativas para “minar evidências de que a Rússia interferiu nas eleições de 2016”, afirma o texto, produzido a partir de depoimentos de 200 testemunhas e da revisão de 1 milhão de páginas de dossiês. Além disso, Manafort teria compartilhado informações com o aliado russo. Manafort “estava se comunicando secretamente com um oficial da inteligência russa, (...) enquanto a operação da inteligência russa para ajudar Trump estava em andamento”, descreveu o relatório. Os serviços de espionagem dos Estados Unidos temem que o Kremlin tente mais uma vez interferir nas eleições deste ano. Condenado a sete anos e meio de prisão por fraude fiscal e bancária, além de lavagem de dinheiro, Manafort ganhou o benefício da prisão domiciliar em maio passado, por conta da pandemia da covid-19.

À tarde, o diretor-geral do Serviço Postal dos Estados Unidos, Louis DeJoy, anunciou a suspensão para depois da eleição de 3 de novembro de uma série de reformas que supostamente dificultariam o voto à distância, por meio do correio. Entre as mudanças planejadas, estavam o corte de horas extras, a redução na carga horária e a remoção de caixas de correspondência. Trump defendia as transformações, sob a justificativa de que o voto postal é vulnerável a fraudes. Eleitores e políticos impossibilitados de sair de casa para votar apresentaram uma ação contra o presidente, em um tribunal federal de Manhattan. Os dois reveses para Trump ocorreram no momento em que ele é alvo de ataques da Convenção Nacional Democrata, em Milwaukee.

Interações

“Se descobrirmos que a razão pela qual Trump tem sido tão vergonhosamente respeitoso com Putin está no fato de seu império de negócios pessoais ter profundas dívidas com os russos, isso faria uma diferença nas eleições”, afirmou ao Correio Larry Diamond, cientista político e sociólogo da Universidade de Stanford. Ele acredita que serão necessários, pelo menos, dois anos para essa constatação. Segundo o estudioso, apesar de o relatório do Senado adicionar “detalhes importantes e profundidade” ao que já se sabia, “está estabelecido que a campanha de Trump teve interações profundamente comprometedoras, repetidas e intricadas com os russos que estavam conectados ao Kremlin e à comunidade de inteligência do país”

“É uma conclusão muito grave sobre uma ofensa ultrajante contra a democracia norte-americana, mas não acho que 40% dos eleitores que parecem profundamente comprometidos a reeleger Trump serão tão afetados por ela”, disse Diamond. O professor de Stanford explicou que os republicanos decidiram ignorar a narrativa sobre intervenção da Rússia por amarem o que o presidente faz ou diz, por amarem o aumento no valor de suas ações, ou por odiarem os democratas.

Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), Lilia Shevtsova duvida que o relatório do Senado leve ao colapso de Trump. “O acúmulo de várias coisas desagradáveis, como a recessão econômica e a pandemia, pode levá-lo à derrota”, disse ao Correio. Ela não descarta que os democratas comecem novamente a tocar o “violino russo”. “A suposta afinidade entre Trump e Putin é conhecida. No entanto, outros fatores serão cruciais para Trump na reta final da campanha. Em primeiro lugar, o fracasso no combate à pandemia.”

 » Palavra de especialista

Conclusões assentadas

“Não acho que o relatório do Comitê de Inteligência do Senado surtirá muito impacto sobre a corrida eleitoral. No entanto, se Vladimir Putin invadir a Bielorrússia para salvar o autocrata Alexander Lukashenko e Trump minimizar tal gesto, isso pode afetar as eleições. Se Trump tiver sucesso em destruir o serviço postal dos Estados Unidos, na tentativa desesperada de impedir as pessoas de votarem à distância, isso fará diferença. Se os EUA não conseguirem dobrar a esquina no controle da pandemia da covid-19, por causa da má gestão colossal de Trump, e seu apelo repetido por rumores, meias-verdades e mentiras sobre o coronavírus, isso também fará a diferença. Mas, acho que os eleitores tiraram suas conclusões sobre a interferência russa nas eleições de 2016, e será difícil mudar a opinião deles sobre isso.”

Larry Diamond, professor de ciência política e de sociologia da Universidade de Stanford