O globo, n. 31743, 04/07/2020. Sociedade, p. 14
O acordo de 100 milhões de doses
Audrey Furlaneto
04/07/2020
Maior produtor de vacinas da América Latina, Bio-Manguinhos se arma contra o coronavírus
A primeira vacina produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) data de 1937. À época, a instituição fechou acordo com a Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos, e trouxe de lá o ingrediente ativo para, em seguida, fabricar aqui a vacina contra a febre amarela. Agora, a instituição — mais precisamente sua unidade batizada de Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, ou Bio-Manguinhos, inaugurado em 1976 — será a responsável pela produção da vacina contra o novo coronavírus no Brasil. O anúncio do acordo entre a Fiocruz e a AstraZeneca — farmacêutica que adquiriu a vacina da Universidade de Oxford, que, por sua vez, formulou o imunizante e já o testa em voluntários no Reino Unido, no Brasil e na África do Sul — foi feito pelo governo brasileiro no último sábado. O contrato, no entanto, ainda não foi assinado. O corpo técnico de Bio-Manguinhos vem fazendo reuniões com os pesquisadores para definir os termos do acordo.
TECNOLOGIA IMPORTADA
O que se sabe é que, num primeiro momento, a AstraZeneca vai fornecer ao instituto brasileiro o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção de 30,4 milhões de doses. Segundo o diretor de Bio-Manguinhos, Mauricio Zuma, a instituição fará o processamento final da vacina, etapa que inclui o envase, a rotulagem e o controle de qualidade do produto. O primeiro lote (com 15,2 milhões de doses) da AZD1222, como foi batizada a vacina de Oxford, será finalizado em dezembro, e o outro, em janeiro. Num segundo momento, com a comprovação da eficácia da vacina, o acordo prevê a produção de mais 70 milhões de doses no Brasil. — A primeira fase vai custar US$ 127 milhões, dos quais US$ 30 milhões são para Bio-Manguinhos. Isso porque a gente estima o custo para processar a vacina de cerca de US$ 1 por dose — explica Zuma. — Os outros US$ 97 milhões vão para a AstraZeneca, para comprar o IFA que será processado por BioManguinhos e, também, para as despesas da transferência de tecnologia. Os processos correm em paralelo: enquanto envasa as primeiras 30 milhões de doses, a instituição aprende a produzir o ingrediente por conta própria para fabricar as próximas doses. Foi assim com outras vacinas, como a tríplice viral (contra sarampo, rubéola e caxumba), uma das sete que Bio-Manguinhos
Fornece para o governo brasileiro. Maior parque produtor de imunizantes da América Latina, Bio-Manguinhos é, ao lado do Instituto Butantan, de São Paulo, o principal fornecedor de vacinas para o Ministério da Saúde. Foram 109 milhões de doses no ano passado. A estimativa para este ano, até a pandemia, era de 120 milhões de doses. Além de alimentar o governo com os imunizantes que são oferecidos à população pelo SUS, BioManguinhos é responsável por 80% da produção mundial da vacina para a febre amarela. Em 2020, 21 países da América Latina e um da África já receberam doses produzidas pelo instituto.
Para a produção da vacina contra o coronavírus, a fábrica terá de passar por adaptações, os turnos de trabalho serão ampliados e algumas linhas de produção devem ser interrompidas — sem prejuízo para outras vacinas, muitas delas com estoques garantidos, segundo Mauricio Zuma. Ele conta que a plataforma adotada por Oxford para chegar à vacina do coronavírus nunca foi usada por Bio-Manguinhos. Os pesquisadores apostaram no adenovírus de chimpanzé que recebe uma sequência genética do coronavírus. Inoculado no corpo, o patógeno “fantasiado” provoca uma resposta imune do organismo. — Não temos essa tecnologia, mas temos uma plataforma semelhante para partes do processo, algo que hoje usamos para fazer biofármacos. Por exemplo, já sabemos que é preciso usar biorreatores para cultivar células, e isso nós temos. O que a gente precisa saber é o segredo industrial da vacina, para entender, entre outras coisas, se o equipamento precisa de adaptações ou se precisamos de um equipamento novo — diz o diretor de Bio-Manguinhos.
REGISTRO PELA ANVISA
Embora a produção do primeiro lote da vacina para o coronavírus no Brasil tenha sido anunciada para dezembro, o diretor de Bio-Manguinhos diz que dificilmente a vacina chegará à população no final do ano. Ele lembra que, para isso, a vacina precisa ser antes registrada pela Anvisa. No processo tradicional de aprovação de produtos, a agência exige as provas de eficácia, algo que só será possível, no caso da AZD1222, depois da conclusão dos testes de fase três, ainda e mandamento tanto no Brasil, quanto no Reino Unido. Para acelerar esse processo, a AstraZeneca deve apresentar, entre outubro e novembro, um estudo intermediário da eficácia.
— Nos tempos recentes, eu diria queé inédito adquiri ruma vacina sema conclusão dos testes de eficácia. Da mesma forma que é inédito absorver tecnologia para lidar com uma pandemia. Em geral, agente absorve tecnologia para uma doença que já está estabelecida — afirma Zuma. — Estamos numa emergência, não tem vacina no mundo, e o quanto antes estabelecermos o processo para ter a vacina aqui, mais rápido poderemos alcançara população.